Os candidatos abordam o problema de forma lateral ou mitigada, alguns nem o aventam
Não é nenhum contrassenso a asserção segundo a qual o corporativismo foi tornado elemento essencial na cultura política do País, entranhando-se em quase todas as relações sociais. Amalgamado a concepções e práticas seculares do clientelismo e do patrimonialismo, germinou em terreno fértil, estercado, décadas a fio, pelo positivismo. Além de impregnar, integralmente, as esferas da vida sociopolítica, passou a mediar, de forma perene, os nexos entre a sociedade civil e o Estado, as normas e os institutos, os valores e as ideologias.
Introduzido no Brasil nos anos 1930, e mais especificamente e com maior eficácia na ditadura estado-novista (1937-1945), tornou-se política de governo ou mesmo de Estado. O corporativismo pressupunha que a sociedade deveria ser organizada pelo Estado, por meio de corporações econômicas e de critérios que excluíam a representação eleitoral, os partidos políticos, as ideologias liberais ou socialistas, etc. O Estado, no papel de organizador e regulador da sociedade, teria de garantir a harmonia, a paz social e o progresso – antagonismos sociopolíticos e/ou conflitos entre capital e trabalho não eram admitidos. Getúlio Vargas já em 1931 afirmava que isso seria alcançado na medida em que estivessem reunidos e congraçados “plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos representantes de classe, integrados no organismo do Estado”.
Resultado exemplar dessa política foi a decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Inspirada na Carta del Lavoro do fascismo italiano, a CLT foi assentada em três pilares – estrutura sindical, Justiça do Trabalho e legislação trabalhista –, tendo como fundamento o corporativismo. Juntamente com a regulamentação das relações de trabalho se criou um sindicalismo vertical e subordinado ao Estado, delimitado pela unicidade e sustentado por imposto compulsório. Esse arranjo institucional, além de implicar o estabelecimento de mecanismos inibidores da organização e da intervenção autônoma dos trabalhadores e também do empresariado, instaurou direitos de cidadania regulados e restritos, do mesmo modo que acarretou a cooptação de parte expressiva da sociedade civil. Tendo sobrevivido a vários testes históricos, a CLT preserva, ainda hoje, seus elementos essenciais, que persistem reavivados por força de poderes e privilégios, mesmo antiquados ou extemporâneos.
Conformado, ao longo de décadas, de modo sub-reptício, ao modus operandi, o corporativismo foi potencializado nos anos 1980, num momento de explosão de movimentos reivindicativos, em reação à compressão imposta pelo regime ditatorial. Nessa conjuntura, houve até mesmo uma impetuosa radicalização de pleitos corporativos, animada pela emergência de um sindicalismo de resultados vigoroso – processo que culminaria na Constituinte de 1988.
A nova Carta, ainda que tenha abrigado garantias essenciais de cidadania, acabou saturada de privilégios e mercês, travestidos de direitos lídimos, por pressão de corporações muito bem organizadas e poderosas. Dentre as novidades corporativas pode-se ressaltar o direito de sindicalização e de greve do funcionalismo público. Esses preceitos impeliram à sindicalização extensiva de órgãos e instituições – sindicalizou-se tudo: prefeituras, governos estaduais e federal, Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, polícias, fundações, institutos e universidades, agências reguladoras, etc. Até o Itamaraty foi sindicalizado.
Consecutivamente, houve um aumento significativo de movimentos paredistas e ações por demandas particularistas, manifestações em defesa de salvaguardas estabelecidas. O paredismo nos serviços públicos constituiu-se no melhor dos mundos – depois de meses sem trabalhar e sem perdas e danos e quaisquer ônus em seus proventos, o servidor pode receber vantagens como aumento de salário e benefícios vários, mas, em geral, nada ou quase nada repõe. As greves conduzidas por um sindicalismo de resultados audacioso e impelido por um corporativismo voraz, que subsistem de mercadejar o patrimônio e os fundos públicos, têm como propósito capital a maximização de interesses e proventos pecuniários.
O apogeu desse processo de solidificação do corporativismo se deu neste início de século, não por acaso, nos governos chefiados pelo Partido dos Trabalhadores – consorciado com partidos fisiológicos e clientelistas –, que esteve norteado, desde seu nascimento, por interesses e instintos sôfregos. Nesses governos se retomaram muitas das diretivas corporativas do varguismo: a cooptação da sociedade civil, em especial dos sindicatos; a gestão do Estado em consonância com as corporações estatais e privadas; a reatualização do nacional-estatismo, concertado com conglomerados empresariais e categorias de trabalhadores; a execução de políticas públicas adequadas a determinados setores socioeconômicos; as ações legislativas de fomento a interesses particulares em detrimento do público, além de outras orientações similares. Concomitantemente, revigorou-se aquela cultura política sincrética (mescla de corporativismo, clientelismo e patrimonialismo) referida no início. O resultado foi evidenciar e/ou ativar concepções e práticas, entre as quais a promiscuidade entre o público e o privado; apropriação de bens e fundos públicos por corporações estatais ou não; transfiguração da ética da responsabilidade em ética de conveniência.
Sem sombra de dúvida, a perpetuação dessa cultura política, da qual o corporativismo constitui um de seus pilares centrais, é uma questão primordial a ser solucionada pelas forças que objetivam a democratização e a publicização do Estado e sua relação equânime com a sociedade civil e política. Infelizmente, entretanto, os candidatos à direção e gestão do País têm colocado o problema de forma lateral ou mitigada e alguns nem ao menos o aventam.
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp