Vírus inicialmente atingiu mais abastados, mas evidenciará desigualdades aos chegar nos mais pobres
A crise do novo coronavírus tem uma característica rara num mundo habituado a descarregar seus problemas nos mais vulneráveis: no Ocidente, atingiu primeiramente os países mais ricos e, nesses, as pessoas que tiveram acesso a outros países que, via de regra, são as mais favorecidas. Com isso, o medo do vírus mobilizou parcela da população que normalmente está protegida, dado o acesso a condições materiais e de infraestrutura que a grande maioria não tem. Neste sentido, o vírus é democrático por ameaçar a todos, independentemente de sua condição financeira, o que não é trivial no mundo e, muito menos, no Brasil.
O problema é que o vírus vai chegar nos mais pobres e, então, aparecerão de maneira mais acentuada ainda a desigualdade e a diferença de condições para enfrentá-lo. Será que desta vez aprenderemos que não é possível manter tamanha quantidade de pessoas em situação tão vulnerável? Cairá a ficha de que temos recursos que poderiam ser melhor distribuídos, gerando uma sociedade mais equilibrada, que é interesse de todos?
Na realidade, a democracia na maioria dos países foi incapaz de melhorar a vida da maioria da população. Não porque intrinsecamente produza desigualdade, mas porque a política foi dominada pelos grandes grupos econômicos e passou a defender mais o interesse privado do que o interesse público. Não é por outro motivo que o Brasil ostenta vergonhosas concentração de renda e desigualdade social.
A consequência é que, em momentos de crise, estas feridas aparecem e, de repente, nos damos conta de que 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e que 95 milhões de pessoas, quase metade da população, não têm coleta de esgoto —em um momento em que o saneamento básico faz a diferença para a saúde pública.
E habitações precárias fazem com que boa parte da população não possa assumir, minimamente, o isolamento social. Será que os governos vão finalmente investir para solucionar estes problemas? As prioridades serão, de fato, invertidas?
Do ponto de vista de sobrevivência das pessoas, há um bom tempo se discute a necessidade de garantir uma vida digna para todos. Antes da crise, era pela ameaça de desemprego de até 45% dos trabalhadores em função da revolução tecnológica, combinação de automação industrial e inteligência artificial, que avança rapidamente. Na última segunda-feira, 30 de março, o Congresso aprovou a proposta da renda básica emergencial. Será possível tornar a medida perene como uma necessidade da população mais vulnerável?
Pelo que se pode supor a tendência é a de voltarmos, no pós-corona, na mesma chave que estávamos antes da crise. Isto é, as coisas vão mudar para que tudo continue como sempre foi.
A pressão de parcela significativa do poder econômico —que tem enorme influência na política— pela volta imediata das atividades econômicas diz muito e reduz a esperança de que a quarentena tenha provocado reflexões mais profundas na elite econômica sobre nosso modelo de desenvolvimento e necessidades de transformação.
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A esperança por mudanças fica depositada nos cidadãos (as), já que muitos estão repensando a vida e conscientizando-se da insanidade deste turbilhão em que estamos metidos. O vírus evidenciou ainda mais a nossa fragilidade.
Cabe reconhecer a importância da política e o fato de que, sem ela, não enfrentaremos a crise. Justamente ela, a política, que vem sendo escorraçada por boa parte da sociedade. Em última instância, são os políticos que, para o bem e para o mal, estão enfrentando a crise.
Resta apostarmos no aprimoramento da democracia, que dependerá da participação, transparência e monitoramento da sociedade. Se o indicador for bem-estar da população, a democracia ainda está devendo, mas cabe cuidar para que os governos defendam o interesse da maioria da população e, efetivamente, proporcionem uma condição qualidade de vida para todos. Este é dos maiores desafios que temos pela frente, para evitar que aventureiros aproveitem de suas fragilidades e assumam o poder, perpetuando a desigualdade que não nos deixa avançar como nação.
Jorge Abrahão é coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.