Para Chantal Mouffe, só o populismo de esquerda pode derrotar o de direita
De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben, David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).
Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos convertidos.
Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.
Na década de 1980, e perante a “ofensiva neoliberal” de Thatcher e Reagan, Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.
Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na luta das minorias –sexuais, culturais, étnicas etc.– uma nova bandeira pós-marxista.
O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de Mouffe, uma nova “hegemonia progressista” seria plural, feita de várias vozes, e não de uma tribalização selecionada.
Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que obviamente recomendo: “Por um Populismo de Esquerda” (edição portuguesa pela Gradiva).
O título é um achado. “Populismo” é palavra maldita para muitos progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direita que tomaram conta do palco.
Não para Mouffe. Mais: ela defende explicitamente que a única forma de derrotar o populismo de direita passa por uma alternativa populista de esquerda.
O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o que Mouffe entende por “hegemonia neoliberal” teve rédea solta. De tal forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada –desregulação, privatização, austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da “terceira via”, foram os rostos dessa rendição.
Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das miniminorias, perdeu o trem da história.
É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de direita: é mesmo “nós” contra “eles” –ou, melhor dizendo, o “povo” contra a “oligarquia” neoliberal. E que povo é esse?
Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas –trabalhadores, imigrantes, minorias etc.– que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-democracia reinante.
Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou rupturas tecnológicas que atingiram duramente o “proletariado”.
Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?
Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de “povo” interesses tão díspares?
Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como ameaça econômica global.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as fronteiras e tudo será perfeito?
Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11 de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente relacionada com a segunda.
O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de insegurança coletiva correspondente.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera “islamofobia”?
Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono do “proletariado” pela nova esquerda ou o momento pós-democrático na Europa.
Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um rival à altura.
*João Pereira Coutinho é escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.