Bolsonaro e seu incentivo mortífero estão configurados na legislação criminal
A substituição, em meio a uma pandemia, de um ministro que segue a Organização Mundial da Saúde e as práticas bem-sucedidas em numerosos países é, em qualquer caso, jogar a vida alheia em uma aposta cega e cruel. Homicida ou genocida, potencialmente. No caso brasileiro, o ato é ainda mais grave no desprezo egoísta por todos os demais, todo um povo.
O ministro que chega traz muita incerteza e confiança rala. Está há muito afastado da prática médica (“fui médico”, disse na posse), nem teve, jamais, alguma experiência com serviços de medicina pública. Como pessoa, sua fala de escolhido foi uma enrolação ininteligível.
Afundou na dupla má intenção: pôr-se tanto como adepto do isolamento recomendado pelas melhores competências médicas —e também por ele defendido em texto de 13 dias antes— como anunciar-se “em alinhamento completo” com Bolsonaro, ou contra aquelas recomendações.
Essas credenciais inversas foram as aprovadas pelo trio de autoridades no assunto que, escolhidas por Bolsonaro, submeteram Nelson Teich a avaliação: um dono de construtura, Meyer Nigri; o publicitário Fabio Wajngarten, tido como distribuidor do coronavírus na Casa Branca e no Planalto, e um dos três vice-presidentes informais-efetivos, Flávio Bolsonaro.
As afirmações de que Bolsonaro retirou Mandetta por interesse eleitoreiro mereceram, por parte de Sergio Moro, uma confirmação traidora: não há, diz ele, “ninguém em sã consciência preocupado com popularidade”. Sendo notório que Bolsonaro não tem consciência sã, Moro o acusa de eleitoralismo. E o faz, não esqueçamos, como íntimo conhecedor de tal consciência.
Apesar do cuidado na escolha de um companheiro para Damares, Weintraub, Ernesto Araújo, Augusto Heleno, Ricardo Salles, Wajngarten e cia., uma possibilidade ficou sem resposta: por que não um general, mais um? Na reunião ministerial que antecedeu por horas a demissão de Mandetta, Bolsonaro quis lembrar aos presentes que foi eleito presidente, algo esquecido no próprio governo.
E daí partiu para o apelo patético de que os ministros ouçam suas opiniões. Pois então, ninguém mais do que os generais do governo, e parece que também de fora, ouve, aceita, concorda, apoia e defende o que Bolsonaro diz e faz.
Com um ou com outro, importa é o que Bolsonaro diz à multidão dos inquietos com o isolamento protetor: “Está começando a ir embora essa questão dos vírus”. Por isso, “tem que abrir o comércio, voltar à normalidade”, “tem que enfrentar o vírus, não adianta ficar dentro de casa”. Com mais ênfase, “tem que voltar à escola”.
A exigência de Bolsonaro contrasta com a situação calamitosa da mistura de mortos e doentes em Manaus, por explosão das contaminações e óbitos. Na constatação da Folha, seis dias atrás, 178 prefeituras de São Paulo já somavam mais de 1.000 casos de contaminação e 100 mortes além do total apresentado pelo governo paulista. O mesmo, por certo, se dá em vários estados, se não em todos. O Brasil não tem preparo nem para contabilizar seus mortos e doentes.
A incitação ao risco maior e à desobediência às recomendações preventivas tem, é óbvio, fácil penetração nos segmentos menos instruídos. Sem dúvida, é causa de parte do aumento de aglomerações pelo país afora, com avanço das contaminações.
Bolsonaro e seu incentivo mortífero estão configurados com clareza na legislação criminal. Inaplicável porque a carência de caráter se impõe à legislação. Mas daí não resulta que crime deixe de ser crime e criminoso deixe de ser criminoso.
Por tudo o que disse até agora, o recém-ministro Nelson Teich subscreve, com repetição sobre repetição, estar “em alinhamento completo” com Bolsonaro. Torna-se de repente convicto da “gripezinha”, portanto, e do que a leva até o Código Penal. Disposto a acabar com o isolamento preventivo, mas não com a falácia: nada vai “mudar de forma brusca”. Logo, vai mudar. Mudança brusca basta-lhe a sua.
A OMS e a ciência médica contrariam a “vingança de satanás”, a “gripezinha”, a economia, o interesse eleitoral de Bolsonaro e incontáveis coronavírus. A turma do Planalto e as cúpulas dos ministérios mostram-se aliviadas, sem exceção incômoda, na terra sempre e toda plana.
Janio de Freitas é jornalista.