Uma consulta popular sobre a ‘identidade do brasileiro’, sobre os traços comuns ou predominantes que conferem a todos os nascidos nesta terra uma distinção entre os povos, provavelmente ensejaria tantas respostas quanto for o número de respondentes
Uma consulta popular sobre a “identidade do brasileiro”, sobre os traços comuns ou predominantes que conferem a todos os nascidos nesta terra uma distinção entre os povos, provavelmente ensejaria tantas respostas quanto for o número de respondentes. Há quem diga que só é possível falar em “nação brasileira” no que tange à narrativa única que é comumente ensinada nas escolas, pois tal é a multiplicidade de “brasis” que convivem e interagem dentro do mesmo território e falam a mesma língua que, na prática, é difícil apontar origens históricas, culturais e religiosas que sejam comuns a essa miríade de comunidades que compõem o Brasil. Estaríamos mais próximos, portanto, da ideia de um povo submetido às mesmas leis de um Estado único do que propriamente a de uma nação, vale dizer, um conjunto de indivíduos que reconhece a existência de um passado formador comum e, sobretudo, comunga as mesmas aspirações em relação ao futuro.
Os múltiplos tremores políticos e sociais que na segunda década do século 21 vêm embaralhando as cartas que até então explicavam o Brasil e a natureza de sua gente, com especial destaque para as chamadas lutas identitárias, expuseram ainda mais essa fragmentação. Das grandes (e difusas) manifestações de junho de 2013 – que se repetiriam dois anos mais tarde pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – sobreveio um profundo sentimento de inquietação que permeia diferentes estratos sociais. Foi precisamente essa angústia coletiva que levou o senador Cristovam Buarque, o jornalista Francisco Almeida e o sociólogo Zander Navarro a formularem uma única e singela pergunta a 14 dos mais respeitados pensadores brasileiros da atualidade: por que somos assim?
O resultado está no livro Brasil, Brasileiros. Por que Somos Assim? (Verbena Editora, 2017, 338 páginas), uma riquíssima coletânea de 16 textos – assinados por Alberto Aggio, Augusto de Franco, Bolívar Lamounier, Flávio R. Kothe, John W. Garrison II, José de Souza Martins, Loreley Garcia, Lourdes Sola, Luís Mir, Marco Aurélio Nogueira, Marcus André Melo, Mércio Pereira Gomes, Paulo César Nascimento e Socorro Ferraz – que oferece aos leitores variadas interpretações sobre o Brasil e o nosso modo de ser. A organização da obra foi feita pelo trio citado no parágrafo anterior. A propósito, Cristovam Buarque e Zander Navarro também são autores de dois ensaios, Como somos e O Brasil contra si mesmo, respectivamente.
O livro parte de uma ideia central segundo a qual o Brasil não passa por uma crise, como muitos pensam, pois “crise” pressuporia uma ruptura de tal forma da estrutura política, social e econômica que, pouco a pouco, ela se tornaria absolutamente ineficaz, “mergulhada crescentemente em processos que não apontam para a sua finalização”, como fica bem explicado na apresentação do livro. De fato, uma crise com esse grau de comprometimento do tecido social e das instituições não traduz com acuracidade o caso brasileiro. Em que pese a fragilidade das “pontes” entre os diferentes estamentos, não há nada que indique, pelo menos por enquanto, que as eventuais hostilidades possam extrapolar o limite das contraposições narrativas próprias das lides políticas. Da mesma forma, nada pode ser dito contra a higidez do Estado Democrático de Direito no Brasil. Nossas instituições estão de pé e têm se prestado a tratar das mais prementes questões nacionais, sem prejuízo de eventuais reparos que possam ser feitos à atuação de alguns de seus membros, bem como da desconfiança que parte dos que ocupam posições de autoridade nos três Poderes possam despertar, em maior ou menor grau, em seus concidadãos.
Com efeito, em Os bruzundangas e as possibilidades da República Marcus André Melo reflete exatamente sobre o vigor institucional brasileiro ante os inúmeros desafios que se lhe impuseram nos últimos anos. “Malgrado o sentimento público de rejeição a tudo que aí está, a democracia não vai mal. (…) A doença política no país resulta do confronto entre instituições robustas de controle e o fortalecimento da capacidade da sociedade civil em monitorar governos e representantes. Assemelham-se às dores do parto de uma nova ordem”, escreve o cientista político.
Aos autores não foi dada nenhuma orientação sobre a condução dos trabalhos. Todos tiveram absoluta liberdade para oferecer suas respostas à indagação fundamental, inclusive quanto ao formato. No livro, o leitor encontrará artigos acadêmicos, ensaios e pensatas. John W. Garrison II deu um tom biográfico a seu texto, O Brasil e os brasileiros: um olhar externo (otimismo é preciso!), fazendo uma interessante correlação entre as suas experiências no Brasil, para onde veio ainda recém-nascido com os pais, um casal de missionários da Igreja Metodista, e diversos acontecimentos de nossa História a partir de 1954.
O texto de Garrison destoa dos demais não só pelo estilo, mas também pelo olhar. Em geral, predomina o pessimismo em relação ao atual estado da sociedade brasileira, sobretudo por se tratar de cientistas sociais, em sua maioria, que são “leitores críticos das realidades sociais e seus condicionantes históricos.”
Da frustração e da desconfiança hoje presentes em amplos segmentos sociais surgiu um perigoso sentimento de rejeição da política dita tradicional como meio eficaz para a composição dos conflitos sociais e, principalmente, para direcionar os passos para o futuro.
Não por acaso, observa-se a busca desenfreada por uma “novidade” que não se sabe exatamente quem nem o que é. Esse mar de incertezas que hoje banha nossas visões sobre o País enseja, entre outras razões, uma série de reflexões sobre o presente e o futuro. Algumas delas o leitor encontrará em Brasil, Brasileiros. Por que Somos Assim?, um excelente ponto de partida para quem deseja se situar nestes tempos peculiares.
* Itamar Montalvão é jornalista
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