Após repetidos alertas sobre risco de fogo, cineasta Luiz Bolognesi pede responsabilização das autoridades e diz que comunidade artística internacional está chocada. “Cinematecas guardam o acervo audiovisual de um povo.”
Para o cineasta Luiz Bolognesi, o fogo que atingiu parte do acervo da Cinemateca Brasileira na quinta-feira (29/07) não se trata de um acidente – diante dos avisos repetidos e insistentes de que a entidade estava abandonada e que havia risco de incêndio – mas de um crime administrativo, pelo qual as autoridades competentes precisam ser responsabilizadas.
“Estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes”, afirma Bolognesi em entrevista à DW Brasil.
Ele disse que o ocorrido na Cinemateca é uma “tragédia” e que a comunidade artística internacional está “chocada”. “Cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo”, diz.
O cineasta, que venceu uma mostra da Berlinale deste ano pelo filme A última floresta, sobre o povo Yanomami, afirma que o governo Jair Bolsonaro, como todo governo com “tendência totalitária”, tem um “projeto político” para “destruir o cinema”.
“A arte é o âmbito da diversidade e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo de direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista”, afirma.
Ele diz que o “salto quântico” na degradação da Cinemateca coincide com a gestão Bolsonaro, e identifica um problema semelhante na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que é financiada por tributos recolhidos de produtores de conteúdo e de empresas de telecomunicação, mas não tem destinado recursos para obras brasileiras. “Há ali também desvio do objetivo, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento”, diz.
O secretário especial de Cultura, Mario Frias, que está em Roma para uma conferência dos ministros da Cultura do G20, postou mensagem no Twitter culpando a gestão petista pelo descaso na Cinemateca e disse que solicitou perícia da Polícia Federal para apurar o motivo do incêndio.
Como você avalia o incêndio no acervo da Cinemateca?
A comunidade artística sente isso como uma tragédia, inclusive a comunidade internacional, que está chocada porque uma cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. Seja nos Estados Unidos, no México, na França, na Alemanha. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo. Depois que a gente já teve um incêndio no Museu Nacional, agora temos um incêndio que queimou uma parte do acervo da Cinemateca. A gente já sabe que tinham negativos de curta metragem, parece que de longas metragens também. Toda uma história de Embrafilme, do Instituto Brasileiro de Cinema, toneladas de documentos que contam a nossa história, é gravíssimo.
Agora, isso não é um acidente, vem sendo avisado há mais de um ano que as estruturas estão abandonadas. Uma coisa é a Cinemateca não funcionar legal porque não tem investimento. Mas o mínimo, manter uma equipe que permita que o acervo de um país não se incendeie, não tem como não ter. O custo não é elevado nem discutível.
Trata-se de um crime, e tem que ser responsabilizado criminalmente quem foi avisado ao longo de um ano… Há nove dias, a Procuradoria da República notificou o governo do perigo iminente de um incêndio e nenhuma atitude foi tomada. Na minha opinião, estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes.
Nesta sexta, um dia após o incêndio, o governo publicou edital para contratar uma entidade para gerir e preservar o acervo da Cinemateca. O que isso indica?
Eles já estão com medo da responsabilização jurídica. Acho que algumas autoridades, agora orientadas por seus advogados, sabem que correm risco. E aí falam “estávamos em processo, não deu tempo”. É isso, medo da responsabilidade judicial, é uma omissão administrativa, muito grave.
O descaso que você menciona é resultado de um projeto ou de pouca capacidade administrativa?
A minha interpretação, pelo conjunto da obra, pela paralisação da Agência Nacional de Cinema, que não está mais fazendo fomento, pelo abandono da Cinemateca, pelo abandono da Funarte [Fundação Nacional de Artes], o corte de verbas para a universidade, o corte de investimentos em ciência e tecnologia, parece que é um projeto de um governo que está atacando frontalmente a cultura, a ciência e a inteligência brasileira. Me parece que é um projeto político.
Em relação à Cinemateca, não era a hora de já ter todo o acervo digitalizado?
A Cinemateca estava em um processo lento e contínuo de digitalização do acervo, que foi totalmente interrompido. Essa é uma tendência de todas as cinematecas, guardar e preservar as suas fontes originárias, sejam películas dos anos 1920, sejam fitas magnéticas de 1970, e guardar uma cópia digital que fica para a eternidade. A gente está muito atrasado nesse processo se for comparar com a Cinemateca do México, a francesa ou a alemã.
Além de parar a digitalização, cortaram-se os investimentos a ponto de não ter profissionais e tecnologia suficiente para impedir a destruição de um material que é extremamente delicado e sensível ao fogo. As películas pegam fogo quase como álcool, todo mundo sabe que existem mil cuidados para guardar esse material. Isso vinha sendo denunciado e se agravou muito desde o início do governo Bolsonaro.
Qual é o marco temporal da piora na administração da Cinemateca?
O abandono maior realmente começa com o governo Bolsonaro. A Cinemateca vinha tendo um tratamento melhor sendo construído, passamos algumas crises de redução de investimento no governo Dilma [Rousseff], que a turma da cultura reclamou, mas o salto quântico no abandono, a ponto de todo mundo falar “está para pegar fogo” e o cara não fazer nada até o dia que pega fogo, coincide com as mudanças que foram feitas a partir do governo Bolsonaro, que retirou todo mundo que tinha lá e largou tudo abandonado.
O povo do cinema tentou manter a Cinemateca funcionando com recursos não federais, levantando recursos, e o Ministério da Cultura entrou com uma ação e, com o uso da Polícia Federal, tirou o povo do cinema e disse “vocês não vão cuidar de nada, porque isso é um equipamento que tem uma vinculação com o Poder Federal e nós vamos cuidar”.
De forma geral, como o governo Bolsonaro lida com o cinema brasileiro?
O governo Bolsonaro tenta destruir o cinema brasileiro. Porque a arte é o âmbito da diversidade, traz um pensamento complexo e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista.
No âmbito do cinema, a Agência Nacional de Cinema parou de fazer fomento. Os recursos do audiovisual brasileiro não vêm de Lei Rouanet nem do Orçamento. Tem um imposto criado na época da privatização das empresas de telefonia pelo governo Fernando Henrique [Cardoso] que teria que ser utilizado para o desenvolvimento da indústria de informática e o audiovisual. Até hoje esse recurso é recolhido e direcionado, [entre outras finalidades] para que a Agência Nacional de Cinema faça a política de fomento. Desde que o governo Bolsonaro chegou, o dinheiro entra e sai a conta gotas. Há ali também desvio do objetivo da agência, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento.
Qual é a situação atual do audiovisual brasileiro?
O audiovisual brasileiro é muito potente. Com esse imposto criado no governo Fernando Henrique e regularizado no governo Lula, o Brasil estava entre os dez maiores produtores de audiovisual do planeta, quando o governo Bolsonaro começa. Não é pouca coisa, estamos do lado de quem produz muito e barato, por um custo em dólar extremamente competitivo, e somos um dos maiores consumidores de streaming do planeta, como Netflix e Amazon. Então, apesar de a Ancine ter paralisado a nossa produção autoral, a indústria do audiovisual continua resistindo e produzindo porque os players estrangeiros viram uma oportunidade de produzir séries e filmes de qualidade, tanto na dramaturgia como tecnicamente.
Uma parte da indústria está sobrevivendo trabalhando para players americanos, mas estamos perdendo o nosso próprio patrimônio audiovisual, porque por meio da Ancine as produtoras brasileiras eram detentoras dos produtos feitos aqui, dirigíamos a linguagem do que queríamos fazer. Hoje a indústria brasileira está trabalhando para os players estrangeiros, não totalmente porque tem a Globoplay e alguns outros.
Mas o objetivo do governo era quebrar toda uma indústria que tem cerca de 60 mil empregos diretos e 300 mil indiretos porque a cultura vai contra o projeto totalitário. Uma economia de R$ 25 bilhões, maior que a do turismo em termos de faturamento. O incêndio na Cinemateca é só uma manifestação absurda de toda uma política de destruição de uma indústria e de uma memória.
Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/inc%C3%AAndio-na-cinemateca-n%C3%A3o-%C3%A9-acidente/a-58710325