A tarefa mais urgente para nós, brasileiros, diante de uma das maiores crises políticas que o país enfrenta, é “repensar o Brasil”, diz o antropólogo Antonio Risério à IHU On-Line
Por: João Vitor Santos, do IHU On-Line
Isso significa, explica, “rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Risério denuncia a substituição de uma historiografia nacional baseada em mitos e mistificações, que tentou definir uma “identidade nacional” a partir da colonização portuguesa, por uma nova historiografia encampada pela esquerda brasileira nos anos 1970, em que “o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios”. Segundo ele, em sua revisão historiográfica, a esquerda brasileira “se empenhou mal” e “não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional”. Ao contrário, afirma, ela “optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida”, afirma.
Nesta entrevista, o antropólogo também reflete sobre a crise política brasileira, que tem origem nos “partidocratas”, e assinala que ela é fortalecida pela “polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas”. Na avaliação dele, a crise da representatividade política, denunciada pela sociedade nas manifestações de Junho de 2013, já se manifestava na reabertura democrática, porque “de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais”.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – O Brasil de hoje, especialmente o campo da esquerda, compreendeu as transformações que ocorreram desde 2013? Quais os desafios para apreender essas transformações em suas complexidades?
Antonio Risério – O problema inicial é que os políticos profissionais, partidocratas, parecem não entender ou não querer entender o próprio 2013. Tivemos uma coisa fundamental ali, que foi a exposição pública da crise da representação partidocrata. Na verdade, de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, o próprio sistema político se encarregou de corroer a representatividade e fragilizar a democracia. Isso foi escancarado na reeleição de Dilma Rousseff, que foi eleita dizendo uma coisa e, assim que recebeu o resultado das urnas, passou a fazer outra. A população viu então com clareza que o jogo era cínico, manipulador.
2013, ao colocar em questão o sistema político, com a sociedade afirmando que os partidos não a representavam, abriu a possibilidade de virar a página e de que a gente entrasse no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira, coisa que não interessou a Fernando Henrique e a Lula, que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram. Isso foi sufocado por dois processos, que vieram com a irrupção da Lava Jato e as manobras para depor Dilma, uma trapalhona quase tão confusa quanto Bolsonaro. Com as atenções voltadas para os escândalos da corrupção e do “impeachment”, essa grande discussão política foi adiada.
Na campanha presidencial de 2014, todos os candidatos evitaram 2013. Mas parece difícil rasurar do mapa o que aflorou ali. Na época, Marco Aurélio Nogueira disse algo mais ou menos assim: estava em marcha uma espécie de revolução sem revolução, com a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o partidocratismo. O que ficou claro ali era que as pessoas não se contentariam com uma reforma política pontual, com cláusulas de barreira, listas fechadas, tipos de voto. O que esteve na origem das movimentações de 2013 foi coisa distinta. O que se defendeu, de modo breve, mas nem por isso irrelevante, foi a necessidade de configuração de uma nova cultura política brasileira. Uma política de militância cidadã, com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, sem tomar conhecimento do partidocratismo profissional e seus expedientes surrados, apodrecidos. A mudança não aconteceu. Mas o que há é uma reivindicação adormecida, não extinta. Que, mais cedo ou mais tarde, promete voltar acesa ao centro do palco.
IHU On-Line – O senhor tem defendido que é necessário repensar a sociedade e reinventar a nação, mas por onde começar? O que é a sociedade brasileira hoje? Que conceito de nação deve ser forjado?
Antonio Risério – O que tenho dito é o seguinte. Nós tínhamos uma velha história oficial do país, gerada no tempo do império, com [Francisco Adolfo de] Varnhagen e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que respondia a demandas surgidas com a conquista da autonomia nacional em 1822. Essa história forjou um passado brasileiro, quase o criou, mas produzindo mitos e mistificações. Cerca de um século depois, a esquerda brasileira se empenhou numa revisão dessa história. Mas se empenhou mal. Não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional brasileira. Não: optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida.
E isso, gravando-se nos parâmetros curriculares do ensino, no governo de Fernando Henrique, se converteu em práxis escolar, em bombardeio pedagógico, em ideologia historiográfica dominante. Configurou-se, assim, como a nova história oficial do Brasil. Acontece que essa nova história apenas substituiu mentiras antigas por mentiras novas. O negro luminosamente libertário, assim como o índio ecofeliz, são duas empulhações. Havia escravidão — e escravidão pesada, cruel — tanto na África quanto entre nossos índios. Os tupis eram escravistas. A sociedade tupinambá era uma máquina de guerra implacável, destruindo outras sociedades indígenas, tomando-lhes as terras etc. E foi deles que herdamos a agricultura de coivara, as queimadas destruindo o campo.
Palmares contava com escravos — e palmarinos sequestravam mulheres (negras ou brancas), sem perguntar se eram esposas ou mães, para servi-los em termos agrícolas e sexuais. Quanto ao português, não temos de celebrá-lo sem senso crítico, mas também não devemos tratá-lo apenas como um eterno e sistemático malfeitor, porque também isso é mentira.
Qualquer pessoa séria, que de fato conheça a história de nosso povo, sabe disso. Mas o que vingou, graças à ignorância generalizada, foi o panfletarismo rasteiro da nova história oficial. É por isso que temos hoje de repensar o Brasil, de rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo.
IHU On-Line – Depois de 2013, foi corrente a afirmação de que o país vivia uma crise política. Hoje, em 2019, essa crise foi superada ou apenas abafada? Por quê? E quais devem ser as consequências num curto e médio prazo?
Antonio Risério – De certa forma, respondi a isso antes. Penso que os dois temas mais importantes de 2013 continuam vivos: a crise representacional do partidocratismo e a reivindicação relativa ao direito à cidade, que então se expressou numa luta contra o aumento do preço da passagem no sistema público de transporte. As pessoas geralmente nem sabem, mas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, cerca de 38% da população brasileira andam a pé por não terem dinheiro para embarcar em nenhum veículo. Tem muito mais gente andando a pé do que em automóvel particular. Afora isso, todas as reclamações que emergiram ali ainda não tiveram resposta. Podemos continuar exigindo educação e saúde no “padrão FIFA”, como então se dizia. Nem Dilma, nem Temer, nem o aluado Bolsonaro alteraram qualquer coisa nesse quadro. Mas podemos acompanhar a incompreensão desde o início.
Exemplo vexaminoso disso foi o pronunciamento nacional de Dilma na noite de 21 de junho de 2013, desenhado e orientado da perspectiva do “marketing”. Acuada pelas manifestações, Dilma apelou para o seu marqueteiro, que alinhavou para ela uma fala a meio caminho entre o clichê e o disparate. É suficiente lembrar que ela acenou com coisas como um “plano nacional de mobilidade urbana” (tinha prometido isso na campanha eleitoral de 2010), com o qual nunca se preocupara nem viria a se preocupar. E prometeu uma reforma política estrita, totalmente dentro do padrão partidocrata, tema que as manifestações nem afloraram. Na boa observação de Eugênio Bucci, o pronunciamento “dava respostas contundentes a perguntas que ninguém tinha feito”. E ainda: “O que se deu naquele comunicado foi um dos mais desastrados lances de marketing da história recente do país”. Mas o sistema partidocrata preferiu mesmo fechar os olhos, fazer ouvido de mercador, como se não tivesse sido colocado em questão.
Temer e seu guru Moreira Franco tocaram o barco como se o MDB fosse legítimo representante da sociedade brasileira.
O PSDB, tendo à frente a toupeira do Alckmin, o burguesinho mimado do Aécio e um autodegradado Serra, ficou alheio a tudo (acho que só Fernando Henrique sacou o que estava rolando). E assim por diante. Tanto que, quando chegou a campanha presidencial de 2014, todos se comportaram como se 2013 não tivesse existido. E ele de fato ficou abafado pela polarização quase fratricida em torno do “impeachment”, que se acentuou com Bolsonaro. Interessa ao partidocratismo manter isso assim.
Nosso sistema político, nossos partidos e políticos profissionais, hoje, não têm o mínimo preparo para responder a um questionamento dessa natureza. Falar em crise do partidocratismo com Rodrigo Maia e quejandos é realmente falar grego. Mas a esquerda também não consegue ver nem ouvir isso. A primeira reação do PT, diante de 2013, como vimos num daqueles típicos ataques de sinceridade de Gilberto Carvalho, foi falar da “ingratidão” do povo, que recebeu tantos presentes do partido no governo e então, ingratamente, se rebelou.
Depois, o PT mudou o discurso. Passou a dizer que, sob Lula e Dilma, o Brasil tinha avançado tanto que passou a ficar mais exigente. Ou seja: 2013 passou a ser visto como um subproduto da boa governação petista, o que é o ridículo do ridículo. Só mais tarde o PT passou a execrar 2013 — o que é mais compreensível, porque aquelas movimentações não se moveram dentro da lógica binária do “nós x eles”, que orienta o pensamento petista. Mas também a Rede, Ciro Gomes etc., ninguém analisou o acontecido, nem tirou qualquer lição dali. A Rede, na verdade, parece querer flutuar acima das conjunturas, fazendo um discurso absolutamente genérico e universal, de modo que tende a se dissolver em pura ou mera fantasia filosófica.
Para a extrema direita e Bolsonaro, a coisa é mais simples: a crise do partidocratismo é resolvida pela implantação de uma nova ditadura no país. Mas nós temos a obrigação de pensar em outra direção: a crise do partidocratismo é uma exigência de aprofundamento da democracia, de superação da subdemocracia brasileira.
IHU On-Line – O que leva ao desvirtuamento do sistema político brasileiro? Como nasce a “partidocracia”?
Antonio Risério – Não é uma questão somente brasileira. Na verdade, passei a usar a expressão “partidocratismo” ali pelo final da década de 1970, depois que a li num texto ou num discurso de Pietro Ingrao, que foi dirigente do Partido Comunista Italiano e presidente da Câmara dos Deputados da Itália naquela mesma década de 1970. Não tenho certeza agora, mas acho que Ingrao partia de Gramsci, que falava do perigo de substituir o movimento real da vida social pelo movimento interno da vida partidária. E é isto o que acontece. E tem se acentuado no mundo inteiro. O slogam “não nos representam” apareceu em manifestações espanholas, por exemplo.
E foi um grito dos “indignados” no mundo inteiro, ali pela época da chamada primavera árabe. O militante partidário passa a achar que o partido é o centro do mundo, na melhor das hipóteses — e dá as costas à sociedade. Esta cegueira já recebeu até tratamento poético, louvada num texto — esteticamente, bom, mas, em termos políticos e intelectuais, completamente idiota — como “Wir Sind Sie” de Bertolt Brecht. O que podemos dizer é que vivemos uma crise política sem precedentes, no sentido de que ela atinge não um partido ou outro, mas coloca em xeque todo o sistema político estabelecido. Isso ficou arrefecido no Brasil, em função da polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas. Mas não se pode ter dúvida de que vai voltar com tudo. É uma coisa que está latente, rolando como lava subterrânea de vulcão.
Analisando a situação brasileira, Fernando Henrique Cardoso está certíssimo quando diz que nossos partidos políticos se renderam à lógica do corporativismo: não representam os interesses da sociedade, mas apenas os seus próprios interesses. Basta dizer que, hoje, parte significativa do governo petista da Bahia fez aliança com Bolsonaro. Diante disso, a queixa não é apenas relativa à baixa qualidade de nossa atual representação política, que de fato é uma coisa entristecedora. É uma queixa mais fundamental, mais essencial, como recusa do “establishment” político-partidário, recusa do déficit de democracia que sentimos no país. Na verdade, bem vistas as coisas, nós não temos partidos políticos, temos partidos eleitorais — e só. Um sistema desses está historicamente condenado.
IHU On-Line – Quais são as maiores fragilidades dos partidos políticos de esquerda e centro-esquerda atualmente? Que fatores parecem os levar a um descolamento da realidade social, que culmina na falta de aderência da população aos seus programas?
Antonio Risério – A esquerda não está procurando saída alguma para a crise do partidocratismo, nem para a crise nacional em globo. O PT acha que encarna o interesse nacional e popular e, quem discorda disso, é automaticamente classificado como inimigo do povo e da nação. Ora, este é o caminho mais curto que existe para evitar a praga do pensamento. E este é o principal problema. A esquerda e a centro-esquerda brasileiras, hoje, parecem querer tudo, menos pensar. O pensamento — principalmente, o pensamento livre, nada dogmático, nada subserviente a dogmas e princípios apriorísticos — virou uma espécie de maldição e é estigmatizado. De outra parte, a esquerda se acha mais infalível do que o papa. Sob este aspecto, José Dirceu, Lula e Ciro, entre outros, estão muito mais próximos de Stálin do que do papa Francisco.
Falamos sempre que o PT nunca reconhece os erros, que dirá os crimes que cometeu! E é um partido que cometeu crimes gravíssimos contra a democracia e contra o povo brasileiro, daí que tenha sido eloquentemente rejeitado nas eleições de 2018. Mas também nunca ouvi uma autocrítica em profundidade do PSDB, cuja inflexão à direita começou em 2002, com a candidatura presidencial de Serra, acentuou-se com o “picolé de chuchu” e já ficou à vontade no campo da direita com Aécio Neves, que parece não ter entendido nem uma meia liçãozinha do avô Tancredo.
A Rede, por sua vez, paira acima dos mortais. Sugere uma espécie de nirvana dos ambientalistas, falando sobre coisas reais, mas numa linguagem que ninguém entende. Nenhum sinal de autocrítica, claro. Ciro, menos ainda. É uma pessoa interessante, mas um político fadado ao fracasso. Por fim, temos o narcisismo. A desconexão com a realidade, com as pessoas superestimando seu lugar, sua força etc., em detrimento de uma leitura clara do real histórico. Exemplifico. O ex-deputado Jean Wyllys (que hoje quer definir como “exílio” uma temporada voluntária que está passando no exterior, sempre caprichando no papel de vítima) disse que foi a homofobia brasileira que elegeu Bolsonaro. É ridículo. Presumo que esta homofobia que elegeu Bolsonaro seja a mesma homofobia que deu a Jean Wyllys prêmio milionário no “reality show” da Rede Globo e, ainda por cima, três mandatos de deputado federal. Aparece depois uma antropóloga para dizer que Bolsonaro foi eleito em consequência do avanço do feminismo. Não dá para acreditar. Falo disso em meu novo livro, “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária”, que acaba de ser lançado pela editora Topbooks. Digo que, diante dessa dupla lunática, só falta aparecer um militante racialista neonegro para dizer que foi o racismo brasileiro que elegeu Bolsonaro — e um militante ambientalista para contestá-lo, argumentando que quem elegeu o porra-louca miliciano foram nossas conquistas ecológicas recentes…
Nessa baboseira, são todos “lacanianos”: o real não existe. É como se a eleição de Bolsonaro nada tivesse a ver com a recessão econômica, o desemprego, a crise na segurança pública etc. etc. Foi por esse caminho que a esquerda brasileira, como bem disse Giuseppe Cocco, se converteu em denunciante do óbvio. Hoje, tudo o que ela faz é repetir “ad nauseam” que Bolsonaro é Bolsonaro… Chegamos ao grau absoluto da redundância política. E não vamos sair disso se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizemos para alcançar tão nítido e espetacular fracasso.
IHU On-Line – De outro lado, os partidos de direita e extrema direita parecem ocupar os espaços deixados pela esquerda e centro-esquerda. Como isso se dá?
Antonio Risério – Porque hoje, como diz o povão, é cara de um, cu de outro. Não há nada mais parecido com Lula do que Bolsonaro. E vice-versa. Não nos esqueçamos de que Lula e o PT pensaram seriamente num “terceiro mandato”, na linha de Chávez e Evo Morales. O PT tolera a democracia, na medida em que o partido possa controlar o aparelho estatal e, a partir daí, fazer o que bem quiser com a sociedade, na base de um “populismo tecnocrático”, como diz Werneck Vianna, vale dizer, um populismo palaciano, populismo de gabinete, sem massas. E não é verdade que Dilma tenha lutado pela democracia no Brasil entre o AI-5 e os tempos de Médici. Ela jamais defendeu a democracia no Brasil. Conheço sua história política. Dilma criou uma fantasia deliriosa para consumo próprio, bem distante da realidade da esquerda militarista em que se enrascou. Porque ela veio jovem para a esfera de influência da organização “marxista-leninista” Política Operária (onde ficou um semestre na célula da Faculdade de Economia) — a Polop, que considerava imbecilidade essa conversa de “democracia”. Livro de cabeceira dos polopianos era Estado e Revolução, de Lênin, pregação acesa a favor da destruição do Estado representativo-parlamentar.
Para o Brasil, o programa era unívoco: derrubar a “ditadura dos patrões” para, em seu lugar, implantar a “ditadura do proletariado”. A democracia era olhada como manipulação alienante. Deveria ser combatida em nome da revolução socialista.
E Dilma, embora militante sem qualquer relevo (naquele arremedo de luta armada, nunca foi além da “intendência”), rezava por essa cartilha. Chegou à Polop no momento do racha da organização, optando então pela facção militarista, que se confinou no Colina – Comando de Libertação Nacional. Adiante, duas vertentes da esquerda armada, o Colina e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), se fundiram na VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares. E em todos esses momentos e organizações, “democracia” era palavrão. Mistificação execrável para sustentar a dominação da classe burguesa. O projeto continuava o mesmo: substituir a ditadura militar da burguesia pela ditadura militar do proletariado.
Agora, por que Dilma esconde esses fatos e se dispõe a mentir para o conjunto da sociedade brasileira? Simples: porque hoje fica muito bem na foto quem diz que enfrentou heroicamente a ditadura em nome do princípio maior da democracia. Mas fica mal quem admite que, como os militares, também achava que a solução estava numa ditadura.
E Dilma prefere a morte a ficar mal na foto. O problema é que o autoritarismo populista de esquerda levou o Brasil à pior crise de sua história e o autoritarismo populista de direita prometeu a salvação nacional. Bem, se o autoritarismo de esquerda deixou a desejar, nada mais natural que a população procurar um novo abrigo no autoritarismo de direita. É isso.
IHU On-Line – No caso brasileiro, a vitória de Jair Bolsonaro é uma vitória dos partidos de direita e extrema direita ou apenas o fracasso da esquerda? Por quê?
Antonio Risério – Ambas as coisas. A vitória de uma se fez em cima do fracasso da outra. No segundo semestre de 2013, já víamos que o trem começava a descarrilhar. Era fácil perceber o desastre a caminho: o arrocho salarial já tinha começado, o desemprego crescia, a inflação era absurdamente controlada com preços artificiais, a classe média afundava, combinávamos atraso técnico, crescimento insignificante e inflação reprimida — mas com políticos e marqueteiros sobrepondo um mundo falso, ideológica e eletronicamente construído, a uma realidade que se desenhava em perspectiva catastrófica.
E essa gigantesca construção falaciosa seduziu e hipnotizou a maioria da população brasileira, produzindo a reeleição de Dilma, o quarto mandato do PT. Mas é claro que tal fantasia, totalmente descolada da realidade, não teria como se sustentar. No entanto, nas eleições, a grande mentira triunfou — e deu no que deu. A realidade aparecia clara e escandalosamente na frente de nossas caras.
A direita e a extrema direita navegaram em cima disso. Somaram, a um discurso de redenção econômica nacionalista e restabelecimento de um clima de segurança pública, todo um conservadorismo represado. Um conservadorismo que, aliás, o grande eleitorado petista não tinha deixado para trás.
IHU On-Line – O que a crise do presidente Jair Bolsonaro com o seu partido, o PSL — que surgiu e cresceu estrondosamente na última eleição —, revela sobre o sistema político brasileiro?
Antonio Risério – O que já dissemos: estas coisas estão caindo de podres… Vou ter de repetir o que disse: não temos partidos políticos, mas partidos eleitorais. Além disso, nossos partidos são agências e cabides de emprego. Espaços por excelência para o livre comércio de falcatruas. O que o PSDB tem a ver hoje com qualquer resquício do projeto de construção de uma social-democracia brasileira? Nada.
O PT cresceu combatendo agressivamente a confusão ou simbiose entre o público e o privado que reinava soberanamente na política nacional. Chegou ao poder e o que aconteceu? O mensalão e o petrolão, organizados pelo PT em nome do interesse nacional-popular, se revelaram os exemplos extremos e mais escandalosos da promiscuidade entre o público e o privado. Ética? Nem pensar. O suposto partido da ética abandonou esta senhora antes mesmo do resultado das eleições de 2002. Bolsonaro, por sua vez, já nasceu na escola da podridão política. Do troca-troca do baixo clero legislativo, que é corrupto até à medula. Não tem um pingo da dignidade nacional que ainda é possível encontrar em nossas forças armadas.
Não é só que ele seja mentalmente raquítico. Certo que é um ignorantão, incapaz de distinguir entre país, Estado e nação, por exemplo. Mas é também um padroeiro corrupto do clientelismo, de modo até escancarado. Se o “seu” partido não se mostra tão “seu” assim, irá à busca de outro. E isso vai a um ponto tão escandaloso que não duvido que tramas e tramoias se encarreguem um dia de derrubá-lo.
IHU On-Line – O que é e como se dá o que o senhor chama de “processo de avacalhação da História do Brasil”?
Antonio Risério – O binarismo e o maniqueísmo são coisas perfeitas para quem não gosta de pensar. E nossa esquerda foi criada nisso, no cultivo do maniqueísmo, identificando o opressor (a burguesia, a classe dominante) ao mal e o oprimido (o proletariado) ao bem. E foi assim que partiu para revirar pelo avesso a historiografia tradicional do país.
Tudo começa com a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, durante um século o nosso único centro de estudos históricos. A missão do Instituto, sob a liderança de Varnhagen, um protegido de Pedro II, era dizer quem nós éramos. Em termos geográficos, balizando o espaço nacional, situando rios e cidades etc. E em termos históricos, definindo um elenco de feitos e personalidades memoráveis, casos exemplares que definiriam a identidade nacional.
Foi assim que se forjou a primeira história oficial do Brasil, celebrando a colonização portuguesa dos trópicos. E isso vigorou por um século, ao menos. Até que, na década de 1970, historiadores (e jornalistas) de esquerda resolveram virar a mesa. Mas, em vez de realmente reexaminar a experiência nacional brasileira, eles optaram pela pura e simples inversão da velha história e pela instauração de um padrão fundado no maniqueísmo: o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios.
Assim, bem nos termos da velha retórica marxista, a classe dominante-dirigente foi acusada de tudo e as classes ou os povos dominados passaram a ser celebrados irrestritamente. Não era preciso pensar: bastava denunciar o mal e celebrar o bem. Daí, todas as conquistas nacionais passaram a ser objeto de negação, de ataque e mesmo de deboche.
Nada era relativizável, nada era complexo. Então, da década de 1970 para cá, a experiência nacional brasileira foi submetida a um processo de avacalhação sistemática, configurando-se como a ideologia historiográfica hoje dominante, a nova história oficial do país. Mas não é só. Dividiram o país em um “nós” e um “eles”, ambos míticos. “Nós” teríamos sofrido tudo, “eles” teriam sido os culpados de tudo. Então, todos passaram a dizer: “eles” mataram índios, “eles” humilharam mulheres, “eles” depredaram o meio ambiente etc. Ou seja: “nós” não temos culpa alguma no cartório. Isso é terrível: a gente passa a tratar as coisas na terceira pessoa. Nos demitimos da responsabilidade diante de tudo que fizemos, como se tal demissão fosse possível. Se realmente quisermos levar o Brasil a sério, nos interpretando em profunda profundidade, temos de aprender a dizer nós.
IHU On-Line – Quais os maiores equívocos da “contra-história do Brasil”, tecida desde aqueles que reagem à chamada ‘História tradicional’? E como esse movimento vai “vitaminar” uma virada conservadora?
Antonio Risério – Essa contra-história, que é a nova história oficial brasileira, nasce do casamento da ignorância histórica com o masoquismo nacional, no espaço de uma sociedade bipolar, que vai da euforia à depressão em questão de minutos. Entre seus grandes equívocos, está o de celebrar irrestritamente o experimento escravista de Palmares, por exemplo, ou o de falsificar a história com conversas do tipo “genocídio dos índios”, quando a política lusitana sempre foi a de assimilar os índios, transformá-los em súditos, em brasileiros, ao contrário do que ocorreu com a colonização norte-americana, que via os grupos indígenas como nações inimigas a serem exterminadas.
É possível criticar em profundidade a relação da colonização portuguesa com os índios, mas não acionar o clichê do genocídio, porque não houve isso. Genocídio é guerra de limpeza étnica, projeto de banir um povo da face da terra. Mas como dizer isso, com Thomé de Sousa e Mem de Sá distribuindo terras entre os índios aliados? Como dizer isso com o marquês de Pombal premiando portugueses que se casassem com índias? Não faz sentido. Quem conquistou e colonizou o atual nordeste brasileiro foi a Casa da Torre — e a Casa da Torre era luso-indígena desde sua origem: Garcia d’Ávila casou com uma índia canibal e daí vieram seus filhos e descendentes que avançaram da Bahia ao Maranhão…
Mas a postura historiográfica da esquerda não foi a de analisar, mas a de esculhambar tudo, inclusive o movimento abolicionista e aquela que é ainda hoje a nossa maior revolução social, acontecida em 1888. É como se só os reacionários pudessem se orgulhar de nossa experiência como povo e nação.
Marco Aurélio Nogueira viu bem, comentando meu artigo no Estadão, que provocou também esta nossa conversa aqui. Ele escreveu no “facebook”, dizendo o seguinte: “O texto é precioso pelo estilo, pelo conteúdo e especialmente pela coragem de dizer o que precisa ser incluído em uma agenda estratégica de pesquisa, coisa que ninguém leva muito a sério. Risério denuncia a ‘avacalhação’ a que está sendo submetida a história brasileira, com reflexos dramáticos na cultura, na política, na vida cotidiana. Os efeitos disso têm gerado uma espécie de bloqueio mental dos democratas, que não conseguem nem sequer defender o que seria seu legado. O país vai ficando assim largado pela estrada, para que o primeiro aventureiro dele lance mão, como ocorreu em 2018”. Não por acaso a direita se veste de verde e amarelo. E só ela pode assumir qualquer grandeza que porventura o Brasil tiver? Temos, pelo menos, duas: em meio milênio de história, construímos um povo — e uma nação.
IHU On-Line – Podemos inserir essa “contra-história do Brasil” no bojo dos movimentos globais da historiografia que tentam mudar o centro gravitacional para o que chamam de história dos vencidos? Quais os limites dessa história dos vencidos?
Antonio Risério – Li a matriz francesa e as filiais brasileiras. É a historiografia populista, de que fala Marshall Sahlins em Ilhas de História. Historiografia populista encarnada na (e defendida pela) “nouvelle histoire” francesa, com Jacques Le Goff e seus discípulos, numa leitura empobrecedora de Marc Bloch e Braudel, que se vai desdobrar futuramente, não importa se de forma imprevisível, nas mais variadas ginásticas do identitarismo, em discursos veementes e falsificadores sobre mulheres, pretos, veados, índios etc.
Toda essa gente é muito simpática, mas é incompetente — como diria Caetano Veloso. Na prática escritural-analítica, se comporta como se o porteiro do seu prédio fosse tão ou mais importante, para a história nacional, quanto ou do que Pedro II, Joaquim Nabuco, Getúlio Vargas ou João Goulart. É claro que é importante conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio. Mas não foi ele quem decidiu implantar a Universidade de Brasília, nem tentar levar à prática as chamadas “reformas de base”, que foram o modelo do reformismo social brasileiro. Não foi o porteiro do seu prédio quem implantou a CLT ou decidiu que o Brasil tinha de se engajar na II Guerra Mundial. É preciso aprender a fazer essas distinções elementares.
Além disso, há uma pergunta: quem são os vencidos? Se alguém me diz que são os negros, por exemplo, respondo que, na história cultural do Brasil, na dimensão simbólica de nossa vida social, o candomblé foi vitorioso. Então, tudo isso é muito arbitrário, ideologizado demais. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa de nosso povo.
Não dá para compartimentar tudo. É preciso examinar caso a caso, repito. No caso da adoção da “nouvelle histoire”, de resto, é muito mais rico e enriquecedor alimentar uma compreensão antropológica da história brasileira. Ter uma visão histórico-antropológica do país, analisando cada período, cada conjuntura, em termos diacrônicos e no horizonte interno de suas significações. O problema é que quase todo mundo adora esquematismos, binarismos etc. A complexidade afugenta. Jornalistas a detestam, mas o mundo acadêmico também.
IHU On-Line – Como fazer a crítica dessa perspectiva da contra-história do Brasil, sem rasgar e demonizar todo um passado, mas também reconhecendo passagens abomináveis de nossa história?
Antonio Risério – Seguindo o ensinamento bíblico — separando o joio do trigo. Para dar um exemplo, você não pode celebrar os malês e condenar o 13 de Maio. Por um motivo simples: os malês eram escravistas e o 13 de Maio foi o dia da oficialização do fim da escravidão no país.
Outra estupidez é condenar o 13 de Maio, que tentou realizar um grande avanço democrático, celebrando Zumbi dos Palmares, líder de uma liga escravista. Aliás, as leituras políticas do mito de Zumbi variam muito. Na época do Estado Novo, a Frente Negra Brasileira se derramava em elogios ao nazismo e tratava Zumbi — vejam só — como o führer de ébano. Dessa perspectiva negra, ele seria uma espécie de Hitler quilombola. Na verdade, um quilombo como Cidade Maravilha foi muito mais importante do que Palmares, sob todos os pontos de vista. E aqui podemos tocar numa questão histórica da maior relevância. Os negros que fizeram quilombos, levantes etc., lutavam contra a sua escravização, em particular, não contra a escravização em geral. Não só os palmarinos foram escravistas, os malês também. Em 1835, o projeto dos malês era fuzilar os brancos, escravizar os mulatos e implantar um “estado islâmico” na Bahia. Muito democrático, não?
Mas, ainda aqui, no terreno da história negra no Brasil, temos uma coisa extraordinária, uma vitória cultural espetacular, com os nagôs criando seus terreiros de candomblé, impondo nacionalmente o respeito aos orixás, que hoje o Brasil inteiro celebra em Iemanjá, na virada do Ano Novo. Temos de condenar o sadismo senhorial reinante no sistema escravista e, ao mesmo tempo, saber reconhecer que negros, brancos e mulatos se deram as mãos, numa extraordinária coalizão democrática de classes e cores, para abolir a escravidão no país. E a luta não foi nada fácil, implicando movimentações de massa e operações armadas. Os pretos estiveram na linha de frente disso: dos cinco principais líderes abolicionistas, três eram pretos: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio.
É estranho ver hoje os negros, adotando o padrão ideológico estabelecido pela Fundação Ford e a CIA (e aqui defendido por Florestan Fernandes), jogarem no lixo a bela história de seus ancestrais. Não: temos de rever tudo isso — e caso a caso. A preguiça, a ignorância e a trambicagem ideológica não podem nos impor a leitura que querem, fraudando e defraudando a experiência nacional brasileira. Além disso, podemos ser um pouco marxistas e um pouco freudianos, analisando a conjuntura em que esta contra-história ou nova história oficial do país nasceu. Ela foi gerada por uma esquerda nocauteada em 1968. Foi gerada por gente que direta ou indiretamente amargou a prisão, o exílio, a tortura, o fuzilamento.
Uma gente derrotada na década de 1970, sob a ditadura de Médici. E essa gente escreveu uma contra-história celebrando os derrotados e execrando todas as vitórias do povo brasileiro e da nação brasileira ao longo de seus 500 anos de história.
*Antonio Risério é poeta, ensaísta e escritor. Cursou mestrado em Sociologia com especialização em Antropologia na Universidade Federal da Bahia – UFBA. É autor de, entre outras obras, A casa no Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2019), A Cidade no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2012), A utopia brasileira e os movimentos negros (São Paulo: Editora 34, 2007), Adorável comunista (Rio de Janeiro: Versal, 2002) e O poético e o político e outros escritos (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988).