Cenas insólitas deste domingo fazem conversas sobre impeachment deixarem de ser tabu
O ato de irresponsabilidade sanitária do presidente Jair Bolsonaro fez confluir de vez a crise política com o Congresso com a emergência da chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil.
Neste domingo, o mandatário máximo saiu do isolamento recomendado devido à possibilidade de estar infectado com o coronavírus para confraternizar com apoiadores do ato contra o Congresso e Supremo. Uma cena insólita em todas as suas dimensões.
Enquanto governadores de estado e dirigentes de empresas se digladiam com dilemas diários acerca da dramaticidade das medidas contra o vírus, Bolsonaro achou por bem estimular aglomerações, abraçar pessoas e tirar selfies com seus celulares.
Nada surpreendente, a examinar a folha corrida do bolsonarismo no trato com a ciência —das franjas terraplanistas às políticas ambiental e educacional oficiais.
A pregação da ignorância antiacadêmica é um dos motes entre aqueles aderentes mais fanáticos da seita presidencial. Mas o que se viu neste domingo foi um patamar acima.
O grupo de WhatsApp dos governadores, uma espécie de termômetro do espírito dos estados ante a lida com o Planalto, fervilhou com mensagens unânimes de desaprovação dupla. Primeiro, do ato em si, e segundo, da ligeireza com que o presidente trata uma ameaça à saúde pública.
Entre outros políticos, ouviu-se até referência à lei 1.079/50, que prevê os crimes de responsabilidade que podem levar ao impeachment.
Lá há referências a “tentar impedir de qualquer modo o funcionamento” do Congresso, “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário” e a violar direitos sociais fundamentais, como a saúde.
A rigor tudo vago, claro, mas não é preciso muita criatividade para encaixar as peças. Isso não significa que Bolsonaro corre o risco de ser impedido imediatamente. Mas é certo que o tema deixou de ser tabu, passados pouco mais de três anos do episódio com Dilma Rousseff (PT).
O fator de crise econômica, antes ausente de forma aguda, ameaça tornar-se preponderante à medida que o fechamento radical de grandes países europeus sugere um novo estágio da turbulência global.
Já o vetor ruas não pôde ser aferido de forma correta neste domingo, já que as aglomerações haviam sido inicialmente desestimuladas pelo próprio presidente —pelo visto, de forma dissimulada, num papelão que incorre na falta de decoro também presente na lei 1.079.
Assim, não foi possível saber o grau de adesão. Certamente não foi baixo do ponto de vista de pulverização, já que houve carreatas aqui e ali em vários estados. Na avenida Paulista, em São Paulo, havia claramente pouca gente.
Pode-se asseverar, contudo, uma coisa: se havia uma pessoa contaminada nas aglomerações notadas, quem estava por perto correu risco.
Em termos numéricos, Bolsonaro parece só poder contar com seus apoiadores mais fiéis, talvez um terço do eleitorado, talvez menos. Seja como for, é preciso tomar cuidado com relatos de obscurantismo explícito e tomá-los como majoritários.
Como ele resolveu redobrar a aposta contra o Congresso e o Judiciário, apesar de achar que já havia sido dado “um tremendo recado ao Parlamento”, é de se supor que a contabilidade presidencial só veja o conflito aberto como forma de lidar com as outras forças políticas do país.
Se a opção for essa, a agenda das pautas-bombas e da irresponsabilidade fiscal já ensaiada pelo Congresso estará pronta à sua espera. Paulo Guedes ficará pregando aos ventos a necessidade de reformas que dificilmente virão.
A pandemia parece agora acelerar essa dinâmica, a exemplo do que ocorreu politicamente em outros países.
O bolsonarismo se guia, como já foi dito, por uma pulsão de morte, pela fé em conflitos apocalípticos e no destino messiânico da liderança forjada na violência daquela esquina em Juiz de Fora.
Com a tempestade perfeita acionada pela pandemia na vida real e na economia, terá oportunidade única para testar ao limite suas motivações, salvo a hipótese de um surto de racionalidade de última hora abater-se sobre o país.