O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse
Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.
Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro “American Rage”, a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.
Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.
A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.
Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.
Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”
Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.
“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”
Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.
Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.
“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.
O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.
Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.
No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.
O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”
Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”
Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”
Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.
*Humberto Saccomandi é editor de Internacional