Se estivéssemos em um ano normal, o Brasil e o Rio de Janeiro, em particular, estariam “esquentando os tamborins” para o Carnaval: os barracões da Cidade do Samba a mil, os blocos de rua a pleno vapor, os sambas tocando nas rádios, a Passarela do Samba ganhando os retoques finais. Eu mesmo, fundador e organizador do “Simpatia É Quase Amor”, nesta época estaria percorrendo a região da Saara em busca de novidades para compor minha fantasia.
Mas não é o que está acontecendo. O Carnaval, de novo, teve de ceder diante do recrudescimento da pandemia da Covid. Assim como em 2021, neste ano também não haverá folia nas ruas cariocas e tampouco no Sambódromo. Pelo menos não na data tradicional a que estamos habituados, prevista para ocorrer sempre em torno de 40 dias antes da Páscoa, conforme a tradição católica, consolidada no calendário gregoriano (1573), que rege a vida no Ocidente até hoje.
Foi tudo adiado. O Carnaval dos blocos de rua ficou para o ano que vem. Os desfiles das escolas de samba serão realizados quase dois meses depois da data oficial, no feriado de Tiradentes, em dia 21 de abril.
A data, pelo menos, tem alguma coisa a ver com os desfiles das escolas. Joaquim José da Silva Xavier – o nome de batismo de Tiradentes – talvez seja a personalidade histórica nacional mais abordada em enredos. Vale lembrar que um dos melhores sambas-enredos de todos os tempos, “Exaltação a Tiradentes”, de autoria de Mano Décio da Viola, Estanisláu Silva e Penteado, rendeu o bicampeonato ao Império Serrano, em 1949.
No ano passado, estava todo mundo recolhido em casa, aguardando que a fabricação dos antídotos contra o coronavírus pudesse nos restituir à vida normal. O cancelamento do Carnaval foi recebido como algo necessário, e todo mundo ligado à folia – blocos, bandas, escolas – acatou sem mais delongas a urgência do momento e recuou diante do agravamento da situação.
De lá para cá, num esforço admirável da ciência, que mobilizou mundos e muitos fundos, as vacinas chegaram, e o quadro começou a mudar. Aqui, no Brasil, não mudou tão rapidamente como seria possível, devido ao negacionismo e à política do governo federal na condução do combate à pandemia, responsável por milhares de mortes evitáveis, conforme consta do relatório final da CPI da Covid.
Tudo levava a crer que o Carnaval deste ano seria o da retomada. Iríamos fazer uma festa que valesse por duas, como ocorreu em 1919, o primeiro carnaval depois da Gripe Espanhola – e que também foi o primeiro desfile do “Cordão da Bola Preta”, a mais antiga agremiação do carnaval carioca.
Mas, não. A Ômicron, como foi chamada a nova cepa do vírus, tomou o mundo de forma avassaladora. Em poucos meses, as taxas de contaminação subiram, o otimismo deu lugar à perplexidade, o medo voltou a imperar. A boa notícia é que as taxas de mortalidades não dispararam, graças às vacinas. No entanto, alertaram os cientistas e as entidades científicas, ainda é preciso manter a guarda alta.
Foi nesse contexto que o Carnaval teve de ser adiado. Na folia dos blocos, por suas características – não tem corda, não cobra ingresso, e é aberto a adesões voluntárias de quem quiser participar do cortejo – não há como fazer o controle sanitário (exigir máscara e passaporte vacinal ao folião). Por isso, diante das recomendações de médicos e sanitaristas, os blocos acataram, não sem uma certa dose de frustração, a decisão da Prefeitura de adiar o Carnaval para o ano que vem.
Todos entendemos que a vida está acima de tudo. E o Carnaval, em sua essência, é a celebração da vida. Em sua origem remota, nas festas pagãs do Hemisfério Norte, o Carnaval está ligado ao início da primavera, quando a terra é fertilizada para o plantio de alimentos. A Igreja Católica, após brigar por muito tempo com a “permissividade” das festas pagãs, acabou incorporando-as ao seu calendário.
O adiamento deste ano não veio sem polêmica. Antes mesmo da decisão, as redes sociais já se mobilizavam fortemente pedindo o cancelamento do Carnaval. Os argumentos, e a virulência com que foram proferidos, quase condenavam o “tríduo momesco” como o grande vilão das aglomerações.
O vírus, que até prova em contrário não é folião, não esperou o Carnaval chegar para fazer a festa, levando os gráficos a apontarem para o céu. Isso só aumenta a responsabilidade de todos no combate ao coronavírus.
Quem é da folia já fez sua parte.
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
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