Doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo
As doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo. Duas de nossas obsessões são equiparar nossos inimigos a agentes infecciosos e batizar agentes infecciosos com o nome de nossos inimigos. Não surpreende, portanto, que representantes da direita nacionalista se apressem em culpar a China pela Covid-19. Numa só tacada, acham o seu bode expiatório, que ainda calha de ser comunista.
A história da sífilis se encaixa nessa tendência de forma tão conspicuamente bem documentada que adquire uma dimensão até cômica. Infectologistas ainda debatem a real origem dessa doença, que adquiriu características epidêmicas na Europa no século 16. Mas não há dúvida de que ela era uma arma de propaganda perfeita contra inimigo ou desafetos.
Os franceses rapidamente a batizaram de “mal de Nápoles”, enquanto os italianos a chamaram de “mal francês” ou, no bom latim corrente à época, “morbus gallicus”. Cada nação que era afetada pela moléstia a denominava com o objetivo de responsabilizar o outro. “Mal germânico”, “mal polonês”, “mal espanhol” e “mal cristão” foram alguns dos nomes que o treponema recebeu.
O termo “sífilis”, que soa quase poético, foi cunhado justamente num poema, escrito em 1530 por Girolamo Fracastoro, sobre a história do jovem pastor Syphilus, que recebeu uma doença horrível –a sífilis– como punição por ter insultado Apolo. Fracastoro é um daqueles gênios do Renascimento, que antecipou a teoria do contágio por partículas infecciosas e criou o termo “fômites”, usado até hoje em infectologia. Mas Fracastoro também era italiano e, por isso, intitulou seu poema “Syphilis sive morbus gallicus”, que se lê “Sífilis ou o mal francês”.
Obviamente, essa guerra de palavras nada fez para conter a epidemia, que só foi parcialmente controlada quando a ciência desenvolveu medicamentos eficazes. Entre seus impulsos atávicos e a ciência, fique com a ciência.