Às vésperas de seu ocaso político, o PCB, ainda não atingido em sua espinha dorsal pela repressão e tentando reconquistar a liderança perdida na sociedade civil depois da dura derrota de 1964 – vide artigo anterior –, produziu um documento que, não obstante o linguajar anacrônico e os resquícios canônicos do marxismo-leninismo, apontou com precisão a direção da luta política a uma esquerda envolta nas brumas do mito revolucionário: “mobilizar, unir e organizar (…) (as) forças democráticas (…) contra o regime ditatorial (…) e a conquista das liberdades democráticas” .
Nesta resolução, a unidade democrática ainda não havia assumido a fórmula rígida do MDB: “As formas concretas que assumirá a unidade (…) serão ditadas pelo desenvolvimento da luta. Por ser uma reunião de forças heterogêneas, a frente (…) desenvolve-se simultaneamente com a luta entre os seus próprios componentes. (…) Os comunistas defenderão sempre, no seio da frente (…) a necessidade (…) de organizar (…) o povo (…)” .
Tampouco a frente tinha seu foco principal nas forças liberais – como aconteceria a partir de 1978: “A batalha antiditatorial exige um cuidado prioritário pela unidade das forças mais avançadas da frente única. Os comunistas obrigam-se, por isso, a dirigir sua atenção (…) para a aproximação com as diversas correntes que se incluem no movimento de esquerda (…)” .
O realismo político pecebista, envolto na bandeira já rota do bolchevismo, não foi suficiente para neutralizar a atração que o guevarismo exercia sobre os jovens militantes, o que os impeliu a usar as primeiras grandes manifestações sociais contra o regime, convocadas por eles – a mais famosa delas a Passeata dos Cem Mil, em julho de 1968 –, numa mobilização em prol não da constituição da frente democrática, mas da frente popular articulada à guerrilha urbano-rural; o que acabaria por reforçar a ditadura, limpando o terreno para a institucionalização do arbítrio, em dezembro (AI-5), e o esmagamento da oposição, que esboçava seus primeiros atos ampliados de resistência, não só com base nos intelectuais e nos estudantes, mas também com o apoio do operariado e da Igreja (católica).
Como já vimos, os comunistas, fortemente perseguidos, deixaram escapar a forma concreta com que a frente democrática se apresentaria à partir do ressurgimento dos movimentos sociais – estudantil (1977) e operário (1978). Mas, como em política não há vácuo, as forças progressistas aninhadas nos movimentos sociais, na imprensa alternativa (Opinião e Movimento) e no MDB-autêntico – inclusive as bases do PCB –, passaram a discutir a criação de um partido popular, que, todavia, esbarraria na pretensão das lideranças exiladas em reconstruir/legalizar seus próprios partidos.
O impasse intraoposicionista, que opunha lideranças internas e exiladas, só se resolveria após a segunda greve operária do ABCD (março de 1979), em favor das forças internas, quando a intervenção policial projetou Lula como liderança política nacional autônoma, sem vínculos com as forças tradicionais da esquerda (neostalinistas, castristas, maoístas e nacionalistas) e em rota de convergência com os teólogos da libertação – nova tendência assumida pelo catolicismo de esquerda depois da desagregação da Ação Popular (1962).
É daí que surge o Movimento Pró-Partido dos Trabalhadores (1979) que, sem conseguir atrair as velhas lideranças em vias de retornar do exílio (Prestes, Brizola e Arraes), é bem sucedido em atrair os resquícios da diáspora esquerdista – excetuando os stalinistas –, os ambientalistas, a juventude progressista e uma miríade de novos movimentos sociais oriundos da urbanização dos anos 1960-70.
O PT vem à tona operando uma série de rupturas necessárias à sobrevivência da esquerda radical no novo contexto. No plano da composição social, a classe trabalhadora deixa o segundo plano que ocupava no PCB, cujos quadros históricos eram de origem militar, e passa a ser a principal fonte política de impulsionamento da nova agremiação; não obstante a preponderância castrista na esfera organizava (máquina partidária) e dos intelectuais marxistas no âmbito da luta ideológica.
No plano da estrutura interna, o PT também inovaria assumindo um caráter federativo e pluralista, típico dos partidos socialistas ocidentais, em oposição ao centro único dos partidos comunistas. Isto fez com que os petistas, no curto e médio-prazo, tivessem dificuldades competitivas com os partidos centralistas que disputavam o controle dos movimentos sociais, mas tais dificuldades acabariam superadas pela capacidade da nova formação política em atrair militantes e simpatizantes em diversos segmentos sociais, e campos ideológicos – em particular entre os cristãos –, além de votos.
No plano ideológico, de novo, a inovação aproximou o PT do paradigma socialdemocrático – sem adesão efetiva ao campo –, onde predominava uma acepção ampla de classe trabalhadora e ideais socializantes vagos o suficiente para comportar uma ampla diversidade de crenças organizadas numa luta interna pactuada.
Todas estas inovações, porém, ocorreram à moda transformista, sem efetivo revisionismo político-ideológico e acalentando boa dose de utopismo, tornando o PT um feixe de forças sociais e ideologias contraditórias, amalgamadas pelo carisma de um líder pragmático que perseguia o poder externo (Estado) com base no controle do poder interno (aparato partidário) por meio de lideranças unicistas de viés totalitário, e amparado em discurso de fundo místico-libertador que aliava utopia e pragmatismo numa perspectiva classista singular, baseada no neocorporativismo identitário.
Tal combinação mostrou-se poderosa fórmula para se chegar ao poder, eclipsando e contornando o espinhoso debate acerca do papel da democracia política, e suas instituições, na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual – para não falarmos das instituições econômicas necessárias para tornar sustentável tal propósito. Mas, ao mesmo tempo, se mostrou insuficiente para fundar uma nova tradição apta a renovar a política brasileira, construir um novo modelo de desenvolvimento (sustentável) e resistir aos perigos do carisma e do poder – inclusive à sedução do dinheiro.
A nova esquerda radical – de feições “ornitorrínticas” – atravessou o rubicão do poder, depois de treze anos à frente da União, mostrando toda sua incompetência política e programática, não só para manter a sustentabilidade econômica de seu projeto – afundando o país na maior recessão de sua história –, mas para reverter o lento e persistente esgarçamento dos valores e das instituições públicas/privadas parasitadas pelo etos neopatrimonial das elites dominantes desde a redemocratização; às quais, finalmente, se rendeu e se converteu, em cabal demonstração da esterilidade da fórmula radical convencional no Brasil democratizado.