Hamilton Garcia: O nacional e o democrático como desafios históricos

Um dos alvos prediletos da zombaria, entre nós, é o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, em um artigo que se tornou célebre, afirma que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o próprio nascimento”, e que o "niilismo", a "desidentificação de si mesmos" e a “desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, (e) inquestionáveis” – que Marx chamava de fetichismo –, são o plano inclinado da “decadência ocidental”[i].
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A nova direita mundial marca sua ascensão pela revalorização do nacional com base no cristianismo conservador, em meio à crise do globalismo capitalista, e é ridicularizada por isto. Não deveria.

Um dos alvos prediletos da zombaria, entre nós, é o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, em um artigo que se tornou célebre, afirma que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o próprio nascimento”, e que o “niilismo”, a “desidentificação de si mesmos” e a “desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, (e) inquestionáveis” – que Marx chamava de fetichismo –, são o plano inclinado da “decadência ocidental”[i].

Embora os fatos sociais se distingam dos naturais por seu caráter histórico – permeado pelas vontades em meio às circunstâncias, nos ensinou o mesmo Karl –, Araújo não está nos falando de simples fábula, mas de experiências concretas cujo desprezo, outrora, custou caro ao mundo.

As nações modernas nasceram na Europa, à partir do séc. XIV, impulsionadas pelas transformações econômico-sociais operadas pelo crescimento comercial, na retomada das rotas ocidentais com o Oriente após a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos. Tal processo desencadeou mudanças políticas significativas, Europa adentro, forjando a centralização político-administrativa que ficaria conhecida como absolutismo, de onde podemos destacar dois modelos típicos de Estado-nação: o lusitano e o inglês.

No primeiro, o nacional – centralização do poder numa nobreza controladora das fronteiras e dos impostos – se sobrepôs ao democrático – campo das classes sociais em processo de autonomização pela disseminação da ética comercial (burguesia) – catapultando a parceria público-privada que consagraria o mercantilismo. Não obstante o sucesso inicial, na etapa seguinte (revolução manufatureira), a fórmula lusitana, que subordinava a sociedade ao Estado, compelia a livre-iniciativa à dependência de mercês e incentivava o consumo de luxo em detrimento do investimento produtivo, entrou em decadência à medida que o segundo modelo se desenvolvia.

Neste (modelo inglês), o nacional enfrentaria desde o início a resistência do democrático (local) dando início a um conflito que impulsionaria, com o passar do tempo, a livre-iniciativa econômica e o movimento pela emancipação dos indivíduos, acabando por democratizar o Estado (liberalismo) depois de sangrentos conflitos ao longo do séc. XVII. A nova combinação entre Estado (nacional) e sociedade (democrático) se plasmaria no pacto político da Monarquia Constitucional sob a égide do Parlamento, de onde nasceria o moderno capitalismo industrial que rege os destinos mundiais até os dias de hoje.

O triunfo inglês, todavia, se significou a vitória da ideologia liberal, não implicou em sua disseminação como modelo político na Europa, e isto por uma razão simples: o liberalismo, em sua origem, foi um movimento social, que, na maioria dos países europeus, não teve o mesmo desenvolvimento. Isto possibilitou à Inglaterra tirar vantagem das dificuldades alheias, em detrimento de sua própria ideologia como postulado universal, por meio da economia política do livre-comércio internacional, que, na prática, transformava a periferia de então em vassalo da Inglaterra.

A reação à esta metamorfose do liberalismo foi marcada na França de 1789, onde a revolução democrática acabou assumindo um caráter anticapitalista (jacobinismo) cuja superação seria bonapartista (1799) – onde o nacional se arvorava à tutela do democrático em nome de seu desenvolvimento ordenado –, ao invés de liberal.

Já na Alemanha, o bonapartismo – cuja tradução germânica foi Bismarck – seria a mola propulsora da unificação hípertardia (1871), onde o Estado burguês vem à tona sem o povo (democrático), produzindo crises explosivas que poriam abaixo o Reich (1918) em proveito de um governo liberal-democrático apoiado por sindicatos que, no contexto do pós-guerra, sucumbiria ao caos, abrindo caminho ao nacional-socialismo (nazismo) com sua promessa de ordem social, pleno emprego e bem-estar. Somente após a derrota dos nazistas, em nova guerra insana, a Alemanha, finalmente, sepultaria o bonapartismo em prol do pacto democrático-nacional, que unificaria o país em 1991.

No caso dos países periféricos, que sofreram dominação colonial europeia ou nasceram sob ela, os contrastes do processo de modernização não foram menores. Nos EUA, o Estado-Nação nasceria liberal e democrático no séc. XVIII, depois de uma guerra pela independência (1775-1783) contra a Inglaterra, inaugurando modelo inédito de Estado sem nobreza (federalismo), cujas arestas seriam resolvidas por outra guerra (civil), quase um século depois (1861-1865), que impôs o democrático do Norte sobre o escravista do Sul.

No Brasil, ao contrário, o Estado-Nação foi extraído da espinha dorsal aristocrática lusitana, no séc. XIX (1822), sob a égide de um liberalismo de fachada apoiado no escravismo, subjugando a sociedade até o total esgotamento do modelo (1888).

Isto para não falarmos do Oriente, onde o Estado manteria as características patriarcais (China) e de casta (Índia), de origem milenar, até meados do séc. XX – com exceção do Japão (Revolução Meiji, 1868) –, quando um bonapartismo específico resolveria a transição moderna.

Olhando em conjunto tais experiências, são óbvias as desvantagens do modelo bonapartista em face do liberal no que diz respeito aos benefícios da modernização – não aos custos, altíssimos em ambos. Ocorre, porém, que, fora os anglo-saxãos, como observara Samuel Huntington[ii], a maioria das grandes civilizações se modernizaram pela via bonapartista, em variados graus/formatos, o que indica que tal opção está longe de poder ser atribuída a mero “equívoco estratégico”, devendo ser entendida como tendência diante das resistências características destas formações sociais ao moderno, em meio a um mundo dominado pelo capitalismo inglês/norteamericano.

Para entendermos isso, em especial o Brasil, é preciso distinguir capitalismo politicamente orientado – usado por Raimundo Faoro[iii] para descrever o fracasso do mercantilismo lusitano diante do capitalismo inglês – de bonapartismo (franco-germânico), no qual o Brasil se espelhou em dois momentos depois de 1930 (1937 e 1964). Confundí-los, apenas por conta da hipertrofia do Estado-nação sobre a sociedade civil, é não levar em conta que o Estado português expressava uma transição primitiva do feudal ao mercantil, enquanto a Revolução Francesa – e ainda mais a alemã – já operava sob a era manufatureira, em meio às dores da urbanização e da emergência da contradição entre seus atores modernos, prometendo conciliá-los a partir do intervencionismo racionalizante do Estado – o que implicava num grau de controle do patrimonialismo inimaginável em Portugal e no Brasil.

Entre nós, o bonapartismo teve que enfrentar um liberalismo de fachada guarnecido por um Estado neopatrimonial fortemente ancorado na formação agrária e comercial do país, de tal modo que os impulsos democratizantes que se oporiam ao autoritarismo bonapartista, em 1945 e 1984, acabariam por ser fagocitados pelo etos patrimonial e sua extraordinária capacidade de adaptação, caracterizando um movimento pendular de modernização-autoritária e democratização-restauradora (revolução passiva) que impediu, até aqui, a plena modernização do Estado e da sociedade.

Do lado do “capitalismo de Estado”, o problema reside em sua relativa incapacidade de romper com a carapaça patrimonial, que envolve o Estado-nação desde sua origem (“capitalismo politicamente orientado”), truncando sua plena racionalização e evolução democrática. Isto se deve às características dos grupos dirigentes, nos dois períodos aludidos, por cima (militares, oligarquias dissidentes e burguesias) e seus apoiadores por baixo (pequena-burguesia e trabalhadores).

No que toca aos trabalhadores, é notória sua incapacidade histórica em resisitir ao neopatrimonialismo por baixo (proletariado), enquanto, por cima (camadas médias), facilmente se deixa seduzir pelo liberalismo de plantão, que segue sendo liberista para usar a categoria de Merquior –, basta ver sua subserviência às práticas neopatrimoniais – mesmo no PSDB – e seu ressurgimento no DEM/Centrão, onde o programa segue sendo a cereja do bolo.

O fracasso das revoluções jacobinas, desde o séc. XVIII, mostrou que não há solução democrática sem o nacional. Mas, em todos os lugares, tal encontro exigiu o abandono do etos patrimonialista, que corrói as bases do edifício democrático. Este é o desafio maior do Brasil ainda hoje.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[iv])

São João da Barra, 16/03/19.

[i] Vide Trump e o Ocidente, in. Cadernos de Política Exterior, ano III, nº 6, 2017, IPRI-FAG-MRE/DF; pp. 339/348.

[ii] Vide A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, EDUSP/São Paulo, passim.

[iii] Vide Os Donos do Poder formação do patronato político brasileiro (vol. I), ed. Publifolha/SP, 2000, pp.96-97.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).

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