A extensão da renda emergencial não substitui o enfrentamento sério da crise sanitária
A economia brasileira deve se manter praticamente estagnada no primeiro trimestre do ano. Infelizmente, as expectativas de uma recuperação mais rápida e forte da atividade estão se frustrando, em razão principalmente dos sérios equívocos nas políticas de enfrentamento da pandemia da covid-19. A realidade dá uma dura lição a um país onde o presidente da República e parte de sua elite dirigente acreditaram (e, pasmem, acreditam ainda) que o caminho mais rápido para evitar a recessão econômica seria ignorar as medidas de distanciamento social e encorajar o fim das restrições de mobilidade adotada pela maioria dos governos locais.
O agravamento, a partir do final do ano passado, da disseminação da doença e do aumento do número de hospitalizações e óbitos, ao lado do aparecimento de novas cepas de vírus mais transmissíveis, não apenas está levando ao retorno a fases mais estritas de distanciamento social, mas também tem impactado as expectativas dos agentes econômicos, indivíduos e empresas, minando a confiança, com efeitos negativos sobre as decisões de investimento e consumo, vitais para a sustentação da retomada da atividade econômica. Tais incertezas são mais ainda amplificadas pela percepção de que nem sequer há, no curtíssimo prazo, disponibilidade suficiente de vacinas para o Brasil imunizar os grupos populacionais prioritários.
Não bastasse tudo isso, a nova fase de agravamento da pandemia coincide com o término da maioria dos programas governamentais de estímulo que, no ano passado, atenuaram de maneira relevante os efeitos negativos da pandemia, em particular o auxílio emergencial que evitou consequências sociais mais desastrosas sobre as populações mais vulneráveis.
Estivessem as contas públicas brasileiras numa situação fiscal confortável, e houvesse margem de manobra para corte de despesas menos prioritárias, não haveria muita discussão a respeito da necessidade de extensão dos estímulos fiscais no mínimo por mais um semestre. Países como os Estados Unidos estão agindo dessa forma. Contudo, como fazê-lo aqui, onde, em consequência do enfrentamento da pandemia no ano passado, a dívida pública saiu de 75,8% do PIB para 90,7% do PIB e o déficit primário esperado para 2021 é de cerca de 2% do PIB?
O descolamento da moeda brasileira – excessivamente depreciada em relação ao dólar no contexto do enfraquecimento global da moeda americana e de alta do preço das commodities – é consequência direta da percepção do risco fiscal numa conjuntura que requer expansão do gasto para lidar com a pandemia sem que haja espaço nas contas públicas para tanto.
Uma decisão de simplesmente prorrogar o auxílio emergencial e outras medidas de estímulo tenderia a piorar ainda mais essa percepção negativa, agravando os problemas para a economia, como, por exemplo, a aceleração da inflação que resultaria da queda ainda maior do valor do real, pela piora do risco-país. O aumento da inflação, como vimos o ano passado, prejudicaria mais fortemente as camadas mais pobres da população, agravando um cenário que já lhes é extremamente desfavorável com a pandemia.
Por outro lado, o Banco Central já cogita iniciar o ajuste para cima da taxa referencial de juros, retirando ao menos parte do estímulo monetário que pratica desde o início da pandemia da covid -19 no ano passado. A ata da última reunião do Copom deixa claro que alguns diretores da instituição consideram que o grau de estímulo ora em vigor não é desejável, até porque as projeções de inflação se elevaram nas últimas semanas e se aproximam do centro da meta. Embora compatível com o regime de metas, o movimento de alta dos juros pelo BC, em meio a pandemia e simultaneamente à retirada dos estímulos fiscais tenderia a tirar ainda mais fôlego da economia.
Desse modo, o caminho sensato a percorrer é o de trocar a elevação emergencial e temporária da despesa pública – em razão da persistência dos efeitos da pandemia – por reformas que ajudem a ancorar as finanças públicas no médio e longo prazo, evitando que a dívida pública entre numa trajetória insustentável. Em razão da carência de recursos, os estímulos devem ser focados na população mais vulnerável e mais duramente atingida pela pandemia, não podendo ter a abrangência observada em 2020. Uma solução dessa natureza poderia ao mesmo tempo contribuir para a mitigação dos efeitos da covid-19 e aumentar a confiança dos agentes econômicos, reduzindo os prêmios de risco e aliviando a pressão sobre o câmbio.
A questão é que uma negociação do gênero com o Congresso esbarra nas dificuldades da articulação política do governo, em grande parte devidas à agenda ideológica do presidente da República, mais inclinado a satisfazer seguidores radicais do que forjar consensos em prol da governabilidade.
Finalmente, é preciso não cultivar falsas ilusões. A extensão da renda emergencial e de outras medidas paliativas de estímulo econômico jamais substituirá o enfrentamento competente, sério e enérgico da crise sanitária, principalmente por meio da imunização abrangente e rápida de parcela relevante da população brasileira.
*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do Banco Central