A “solução” para a questão do orçamento federal de 2021, por meio de alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), configura um atentado grave à responsabilidade fiscal. Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, que tende a virar letra morta como mais uma das leis que não pegaram no Brasil. Tudo resultado de um processo orçamentário caótico, em que falharam a equipe econômica e a articulação política do governo, agravado pelo pouco compromisso do Congresso com a higidez e qualidade das contas públicas.
Há pelos menos dois problemas sérios com o orçamento aprovado para 2021. O primeiro decorre do volume extraordinariamente elevado de despesas – mais de R$ 100 bilhões – que ficam fora do teto de gastos, por estarem ligadas ao enfrentamento da pandemia (gastos com saúde e com programas como o Pronampe) e que serão cobertas por créditos extraordinários. O segundo deriva dos vetos do Executivo que foram necessários nas rubricas relativas às despesas discricionárias, com vistas a acomodar o exagerado volume de emendas introduzidas pelo Legislativo, que podem inviabilizar o funcionamento da máquina estatal e a continuidade de políticas públicas essenciais ao país.
Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos
Ambos problemas são péssimas sinalizações para o futuro. De um lado, repete-se o duvidoso expediente do qual abusou o governo Dilma, quando deixava de fora da meta do resultado primário certas despesas associadas a investimentos do setor público. Tal como ocorreu no governo petista, deixar de contabilizar gastos na meta fiscal não tem o condão de reduzir as necessidades de financiamento do setor público. Artifícios contábeis apenas contribuem para a diminuição da transparência das contas do governo. De outro, o corte irrealista, por meio de veto presidencial, de despesas discricionárias, assim como a necessidade de contingenciamento orçamentário, antecipa uma piora ainda maior na qualidade dos gastos, como já o demonstram o novo adiamento do Censo, que deveria ter ocorrido no ano passado, e a míngua de recursos para as atividades de preservação do meio ambiente.
Mas há outros prejuízos e incertezas trazidos pela caótica tramitação orçamentária. A começar pela perda adicional de credibilidade na gestão do Ministério da Economia e na capacidade do ministro Guedes de influenciar as decisões relevantes do governo Bolsonaro com impactos sobre temas econômicos.
A influência deletéria de alguns setores do governo sobre o relator do Orçamento no Congresso, com objetivo de amealhar verbas para seus ministérios à revelia da área econômica, aparentemente com o beneplácito presidencial, dá a medida da pouca força que resta ao ministro da Economia, que outrora foi rotulado pelo próprio Bolsonaro como o “posto Ipiranga” do seu governo. Este tipo de episódio leva de maneira inevitável os agentes econômicos a anteciparem dificuldades futuras para a política econômica, notadamente na área fiscal, sujeita a pressões de toda sorte, vindas de dentro do próprio Executivo, mas também do Congresso Nacional.
Por outro lado, iniciativas ventiladas pelo ministério da Economia na busca de uma solução para o impasse orçamentário, principalmente o da emenda “fura teto”, desgastaram ainda mais a imagem da atual gestão econômica junto ao mercado e aos formadores de opinião, afetando negativamente as expectativas e a própria precificação do prêmio de risco soberano.
Ao quadro adverso no campo fiscal somam-se outras incertezas associadas ao ambiente político e ao desempenho da atividade econômica nos próximos meses. A “solução” trazida para o imbróglio do orçamento revelou a força política do Legislativo, com destaque para o Centrão, sempre ávido por cargos e recursos públicos. O início dos trabalhos da CPI da Covid no Senado – na qual o governo não dispõe de maioria – antecipa momentos políticos difíceis para Bolsonaro, que podem ter reflexos sobre as expectativas e sobre o desempenho do governo em áreas relevantes para a economia. Ademais, a reconquistada elegibilidade de Lula pôs no horizonte o risco de uma eleição plebiscitária no ano que vem entre dois extremos que podem igualmente serem danosos para o país.
Além disso, a situação da pandemia continua bastante grave, em que pese a redução recente no número de infectados e de óbitos. Tal redução, afirmam os especialistas, decorreu em grande parte das medidas restritivas adotadas em boa hora pelos governos locais, mas que cobram seu preço em termos da atividade econômica. Sem a aceleração da vacinação, corre-se o risco de ficarmos presos na armadilha do “abre-e-fecha” até pelo menos o final do ano, com consideráveis impactos negativos sobre a economia. O recrudescimento da pandemia na Índia ameaça-nos não apenas com novas cepas do coronavírus, como também com o risco de falta de insumos para a produção de imunizantes necessários à manutenção de um ritmo mínimo de vacinação no Brasil.
Assim, o cenário de incertezas crescentes e de economia estagnada vai se tornando o mais provável para o biênio 2021-2022, após a forte recessão do ano passado e o desempenho anêmico nos anos anteriores. Com isso, torna-se, infelizmente, pouco provável a recuperação do emprego e a melhora dos indicadores sociais nos horizontes de curto e médio prazo.
*Gustavo Loyola é doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/incertezas-crescentes-economia-estagnada.ghtml