Cristina Ávila / Amazônia Real
Brasília (DF) – O rolo compressor do governo Bolsonaro passou por cima da opinião pública e aprovou, nesta quarta-feira (9), que o Projeto de Lei 191, que liberará a mineração em terras indígenas, passe a tramitar em regime de urgência no Congresso. O presidente da Câmara, o agropecuarista Arthur Lira (Progressistas-AL), costurou as condições para a votação do requerimento do deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR), líder do governo, enquanto o cantor Caetano Veloso, acompanhado de dezenas de artistas e lideranças da sociedade civil, liderava o Ato pela Terra no gramado da Esplanada dos Ministérios. Em votação chamada de “covarde” por parlamentares da oposição, a Câmara Federal aprovou, às 21h46, a urgência da tramitação do PL 191 poucos minutos após o encerramento do ato. O 1º vice-presidente Marcelo Ramos (PSD-AM) anunciou a aprovação do requerimento por 279 votos favoráveis, 180 contra e 3 abstenções.
Em visita ao Congresso, Caetano Veloso discursou e pediu ao Poder Legislativo “responsabilidade de impedir mudanças legislativas irreversíveis” contra os projetos de lei que mudam a política ambiental no Brasil. “O desmatamento na Amazônia saiu do controle. A violência contra indígenas e outros povos tradicionais aumentou. (…) Uma série de projetos de lei ora em pauta no Congresso Nacional podem tornar a situação ainda mais grave. Se aprovadas, podem permitir o desmatamento, o garimpo em terras indígenas e desproteger a floresta contra a grilagem”, alertou Caetano Veloso, que afirma ter sido escolhido como porta-voz do ato por ser o organizador mais velho.
O Ato pela Terra começou pontualmente às 15 horas, quando representantes de movimentos sociais de negros e negras, quilombolas, indígenas e centrais sindicais começaram a subir no carro de som, que serviu de palco. Mas minutos antes já circulava no Legislativo a notícia de que o líder do governo havia conseguido as assinaturas necessárias para votar o requerimento de urgência para o PL 191/2020.
Cerca de 30 minutos depois de Caetano subir ao palco, e enquanto ele ainda cantava, terminava a reunião de líderes na Câmara com a perspectiva de que o PL 191 fosse votado ainda na quarta-feira. No plenário, Arthur Lira anunciou a criação de um grupo de trabalho por 30 dias com a composição de 20 parlamentares, 13 da base de governo e 7 da oposição. Antes da aprovação do requerimento de urgência, o líder de governo garantia que o atual texto do PL 191 será “descartado” e o GT ficará encarregado de elaborar uma nova versão para a lei. De acordo com Lira, a proposta de um novo texto será analisada em abril, conforme acordo entre líderes da base do governo e da oposição, mas já nesta sexta-feira (11) será formada a composição do GT.
A decisão da presidência da Câmara revoltou o público e artistas, que participavam do Ato pela Terra, e também os parlamentares da oposição, que não se contiveram. Ainda durante a sessão deliberativa para o Programa Nacional para Pessoas com Câncer de Mama (PL 4171/21), tema amplamente defendido pelos congressistas, os deputados federais iniciaram as críticas.
“Objetivamente a liberação vai levar à tomada das terras dos povos originários, e isso é uma guerra que já acontece todos os dias. A votação da urgência hoje é inoportuna e vai parecer provocação a esse grande ato de hoje”, disse Alice Portugal (PC do B-BA). Sua colega da oposição, Erika Kokay (PT-DF), acrescentou: “Nenhuma guerra pode servir para que se destrua a Constituição ou os direitos dos povos originários. Numa guerra temos que proteger a população. O que se faz aqui? Foi publicado um estudo que a maior parte das minas de potássio não está em terras indígenas. Então não me venham com mentiras. Esse projeto é uma violência contra a Constituição e os povos indígenas.”
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“Espetáculo de cinismo”
O presidente Jair Bolsonaro (PL) apelou para a guerra da Rússia contra a Ucrânia como forma de acelerar a tramitação do PL 191, de autoria do próprio Executivo. No falacioso argumento, o Brasil enfrentará dificuldades se não permitir a mineração em terras indígenas, uma vez que se refere à presença do mineral no rio Madeira. O País importa da Rússia cerca de 20% do potássio necessário para a fabricação de fertilizantes. Porém, a maior parte não se encontra nas terras indígenas.
“É um espetáculo de cinismo votar esse projeto dos fertilizantes (PL 191). É fazer coisa inconstitucional para garantir fertilizantes por causa da crise russa. O Brasil tem potássio para cem anos, mas só 10% estão em terras demarcadas. O que eles querem é invadir as terras indígenas. O agronegócio troglodita quer avançar sobre as terras indígenas”, disse Ivan Valente (PSol-SP).
A deputada indígena Joenia Wapichana (Rede-RR) também criticou o rolo compressor do governo Bolsonaro, lembrando que as principais minas de potássio estão localizadas em São Paulo e em Minas Gerais, e não na Amazônia. “O mercado financeiro já se manifestou que está até contra o PL 191, porque vai bloquear recursos para o País. É ele (o PL 191) quem vai resolver o problema dos fertilizantes? Não. Ele vai levar a morte. Não é às custas de vidas indígenas que vamos resolver essa situação”, protestou.
Do lado do governo, deputados usaram o mesmo argumento do presidente Bolsonaro para defender a urgência do PL 191, isto é, que a guerra da Rússia contra a Ucrânia prejudicará o fornecimento de fertilizantes. Mas quem deixou claro o particular interesse do governo foi o líder Ricardo Barros: “Mineração em terra indígena estava na plataforma de governo do candidato Bolsonaro”. Procurando se colocar como um legalista (“posso assegurar que estamos apenas com 30 anos de atraso regulamentando a Constituição brasileira”), o líder governista garantiu que considera “horrorosas as cenas de rios da Amazônia que são explorados por garimpeiros ilegais”, deixando claro que o objetivo é abrir espaço para a exploração de grandes mineradoras na Amazônia.
Mobilização civil
Milhares de pessoas participaram do ato na Esplanada dos Ministérios. Em clima festivo, mas também combativo, os artistas faziam suas apresentações e passavam alguns recados do sentido do evento em Brasília. “Até a última gota de sangue eu vou lutar por um país decente”, protestou o cantor Emicida, antes de iniciar sua apresentação, já na noite de quarta. Artistas como Baco Exu do Blues, Criolo, Lázaro Ramos, Nando Reis, Leona Cavalli e Christiane Torloni também participaram. Muitos puxaram um “Fora Bolsonaro”, como a cantora Daniela Mercury e as atrizes Cissa Guimarães e Zezé Polessa. O Ato pela Terra foi idealizado por Caetano Veloso e pela esposa, Paula Lavigne, que convidaram os artistas e as organizações sociais para o protesto.
Por volta das 21h20, já perto do fim do ato, Caetano Veloso cantou a música Um Índio, ao lado de lideranças indígenas como Célia Xabriaba e Txai Suruí. Sonia Guajarara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), sintetizou o sentido da manifestação: “Estão virando as costas para o nosso Ato pela Terra, estão virando as costas para a vida, para o meio ambiente. Mas estamos aqui com Caetano e todos os artistas que tiveram coragem para juntos dizer que vamos continuar lutando, que vamos continuar na resistência, porque nós somos a luta, nós somos os povos originários, e estamos aqui que nossa luta é pela vida”, disse Em seguida, Caetano cantou a música Terra.
De tarde, o cantor já havia cantado essa música no fim de um encontro com o presidente da Senado, Rodrigo Pacheco (PSD). Momentos antes, ele e um grupo de mais de 20 artistas se reuniu no gabinete da ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia e contou com a presença dos ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.
Pacote de destruição
Pela manhã, o pacote de maldades expressas em leis anti-ambientais que tramitam no Legislativo entrou na pauta de debates da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Aproveitando da manifestação que ocorreria de tarde, a comissão recebeu convidados como a indígena Txai Suruí e as atrizes e ativistas ambientais Leticia Sabatella e Maria Paula.
A audiência pública foi provocada pelo senador Fabiano Contarato (PT/SP), que Bolsonaro deseja acabar com o Ministério do Meio Ambiente ainda antes de assumir o mandato. “Não conseguiu na lei, mas está acabando na prática. Acabou com a Secretaria de Mudanças Climáticas, com o plano de combate ao desmatamento e queimadas nos biomas, com o departamento de educação ambiental, criminaliza as organizações sociais, boicota a participação da sociedade nas decisões sobre políticas públicas, já autorizou a liberação de 1.200 agrotóxicos. Uma tragédia anunciada”.
“Não podemos continuar apenas reativos. Precisamos ser proativos”, exclamou o senador petista, citando os principais projetos de lei considerados “genocidas” que tramitam no Congresso, como o PL 2159/2021, que flexibiliza o licenciamento ambiental, o PL 2633/2020 e o PL 510/2021, que incentivam a grilagem de áreas públicas, e o PL 6.299/2022, mais conhecido como “PL do Veneno” e que revoga a atual Lei de Agrotóxicos. “O governo arma grileiros e incentiva a usurpação de terras.” Contarato ainda citou o marco temporal (PL 490/2007), defendido por ruralistas que pretende espoliar terras indígenas para o agronegócio, estabelecendo a data da promulgação da Constituição como limite ao direito de ocupação.
“Vivemos uma guerra”
A audiência pública no Senado teve a participação de Txai Suruí, ativista que foi destaque na COP26 em Glasgow no ano passado e por isso se transformou em alvo de mensagens de ódios e ameaças de bolsonaristas. “Vivemos uma guerra. Quando serão retirados os 20 mil garimpeiros que estão no território Yanomami, as 6 mil cabeças de gado que estão na terra Uru-Eu-Wau-Wau e os garimpeiros que estão na minha terra, Sete de Setembro, em Rondônia?”, questionou. Ela enfatizou as contaminações por mercúrio na exploração de garimpos no país e as ameaças de morte enfrentadas pelos povos que resistem na manutenção de seus direitos constitucionais. “Esses projetos que tramitam no Congresso têm como objetivo beneficiar os criminosos ambientais.”
A síntese dos projetos que podem levar à destruição da Amazônia e de outros biomas que tramitam no Legislativo foi refletida na voz de um dos ambientalistas mais atuantes do país, João Paulo Capobianco, vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade e ex-secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente. Usando números do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), ele denunciou à Comissão de Meio Ambiente a destruição da Amazônia, que já chega a nível de risco irreversível, impulsionado pelo governo Bolsonaro.
Capobianco enfatizou que quase 30% dos imóveis registrados no Cadastro Rural Ambiental (CAR) são ilegais e usados como ferramenta para a grilagem de terras públicas. O cadastro foi criado em 2012 para garantir a conservação de reservas legais e áreas de proteção ambiental e faz parte do Código Florestal. Tem informações em tempo real por meio de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele afirmou que até abril de 2021 apenas 2% dos polígonos de desmatamento identificados pelo Deter (o Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real) nos biomas brasileiros e 5% da área total desmatada e identificada entre 2019 e 2021 haviam sido embargados ou foram autuados pelo Ibama.
*Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-ignora-ato-pela-terra/