Abismo que cavaste com os teus pés
A crítica incomoda quanto mais encontra eco na nossa insegurança. A recente fala do ministro Gilmar Mendes, sobre o risco de o Exército ser associado ao genocídio em curso, teve peso não tanto pelo uso da eventual hipérbole, mas pela apreensão que evocou.
Não é novidade para ninguém que os militares (e não só eles, diga-se) fizeram uma aposta arriscada ao darem as mãos para Jair Bolsonaro. O barquinho do bolsonarismo só não apresentava um risco óbvio para quem, deliberadamente, olhasse para o outro lado. Havia muita gente diferente a bordo: aqueles preocupados com um Brasil mais liberal, os militares buscando a redenção pelos erros do passado e uma ala ideológica buscando algo que ninguém sabe direito o que é, mas sabe que é ruim… talvez a borda da terra plana. Todos, com a aparente exceção dos últimos, dispostos a concessões perigosas.
Os que deliberadamente viraram o rosto o fizeram, como muitos dos eleitores do capitão, acreditando que o presidente poderia ser moderado. Não demorou, entretanto, para que ficasse claro que o bolsonarismo só existe no conflito e se escora no absurdo. Se impôs o dilema: ou abandonavam o barco e admitiam o equívoco, ou permaneciam, assumindo o risco de se misturar aos erros do governo.
Pegaram seus violinos e decidiram permanecer. A fala do ministro do STF chama a atenção para a água no pescoço.
Muita gente viu nessa embarcação a única chance de voltar ao poder. Confiaram demais na própria capacidade de controlar o capitão e esqueceram de cogitar que poderia haver ataques perpetrados por outros tripulantes. Mais: não contavam com a tempestade do coronavírus. O mar agitado acionou o alarme do salve-se quem puder. Não há botes para todos e nem todos se deram conta de que precisarão de botes. Há quem tenha consciência de que é preciso desembarcar, mas sem qualquer outra opção à vista, resiste pelo medo de morrer à deriva no mar, ainda que sob o risco de afundar com o manche longe das mãos.