Mais longevo diretor científico da Fapesp, engenheiro deixa o cargo após 15 anos
Gabriel Alves, da Folha de S. Paulo
O engenheiro Carlos Henrique de Brito Cruz, 63, o mais longevo diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), deixa neste mês o cargo em um momento em que as evidências científicas para guiar políticas nunca foram tão importantes e em que boa parte das esperanças quanto à resolução da pandemia de Covid-19, de vacinas a tratamentos, estão depositadas na ciência.
Ele diz, porém, que é importante que autoridades governamentais e cientistas não prometam soluções de curto prazo que não possam ser cumpridas.
“Todos vamos sofrer menos se basearmos mais as respostas na ciência. Mas a gente não pode dizer que ela vai resolver tudo magicamente”, diz.
Ele faz uma avaliação positiva da resposta atual de cientistas, assim como aconteceu à época da zika, cinco anos atrás.
“A gente tem que entender que, mesmo com altos e baixos, o esforço que o Brasil inteiro tem feito nos últimos 60 anos para criar um sistema de pesquisa e para formar pessoas mostra que somos capazes de oferecer algumas respostas em momentos como o de agora.”
A Fapesp investe anualmente mais de R$ 1 bilhão em bolsas e em auxílio à pesquisa. Mais de 19 mil propostas foram analisadas em 2019.
Em sua década e meia de gestão na maior agência estadual de fomento à pesquisa do país, Brito Cruz deixou marcas na no sistema de ciência e tecnologia, como um grande estímulo à colaboração entre universidades e institutos de pesquisas com empresas e à internacionalização da pesquisa, com parcerias com grandes centros internacionais, como os Institutos Nacionais de Saúde (EUA), o British Council (Reino Unido) e o Centro Alemão de Ciência e Inovação.
O que considera que deixou pendente é melhorar a vida dos pesquisadores com relação à burocracia na qual são imersos, seja na hora de fazer a prestação de contas ou preencher formulários para importação de reagentes.
“Os pesquisadores de Unicamp, USP e Unesp estão competindo com os colegas de Stanford, Cornell e de Oxford, mas o grau de apoio institucional que esses pesquisadores têm é 50 vezes melhor do que os que existe por aqui.”
Carlos Henrique de Brito Cruz nasceu em 19 de julho de 1956, no Rio de Janeiro. Formou-se em engenharia eletrônica pelo ITA e fez mestrado e doutorado em física pela Unicamp. Foi pesquisador nos Laboratórios Bell, da AT&T, entre outras entidades. É professor titular no departamento de eletrônica quântica da Unicamp. Foi reitor da universidade de 2002 a 2005 e presidente da Fapesp entre 1996 e 2002. Assumiu a diretoria científica em 2005 e fica no cargo até abril de 2020.
Ele passa o bastão para o médico e neurocientista Luiz Eugênio Mello, professor titular da Unifesp.
O que levou o sr. a ser diretor científico da Fapesp e por que ficou tanto tempo no cargo?
Em 2004, me interessei em ser diretor científico porque, conhecendo bastante sobre a Fapesp [já havia sido presidente da entidade entre 1996 e 2002], achei que eu poderia contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico do estado de São Paulo. E me pareceu, naquela época, que assumir essa posição me daria alegria, satisfação. E isso aconteceu. Acho que consegui fazer coisas relevantes para melhorar o sistema e foram 15 anos muito interessantes e desafiadores.
Se o senhor tivesse que destacar uma ou duas realizações do senhor nesse período, quais seriam?
Uma foi incentivar e conseguir que a comunidade de pesquisa em São Paulo se engajasse em mais pesquisas colaborativas, seja entre universidades, entre universidade e empresa, seja no Brasil ou com colaboradores de fora.
Antes havia um sistema de pesquisa muito bom, muito forte no estado de São Paulo, mas ele interagia pouco com outros sistemas no Brasil e no mundo e pouco também com empresas. Não se trata de incentivar a colaboração pela colaboração, mas como instrumento para aumentar a qualidade da pesquisa.
Outra contribuição foi o aperfeiçoamento com o qual a Fapesp analisa e seleciona projetos de pesquisa, tornando-o mais capaz de avaliar a qualidade e de interagir com a comunidade científica de forma que essa mesma comunidade considere a avaliação legítima, mesmo quando seus projetos não são aprovados.
Havia falhas?
Não é que havia falhas. Toda organização sempre precisa melhorar. Tenho certeza de que quem virá depois de mim vai melhorar ainda mais o sistema. O sistema era bom para o começo dos anos 2000 e nós o aperfeiçoamos usando a experiência de organizações estrangeiras, por causa da interação que criamos, para torná-lo melhor.
A maneira como o público enxerga a ciência mudou nesses 15 anos. Ao mesmo tempo em que a divulgação científica ganhou espaço, nunca vimos tanta pseudociência em evidência. Estamos melhorando ou piorando no fim das contas?
Nesse período eu vi no Brasil e no mundo pelo menos dois movimentos importantes. Um é que aumentou o grau de ceticismo e de crítica com relação à ciência, chegando perto ou ultrapassando o ponto em que isso é saudável. Dois exemplos que ilustram isso são as alucinadas teorias terraplanistas e o movimento contra as vacinas, que, de alguma maneira, agridem a ciência e suas conquistas.
O segundo movimento, que pode ter relação com o anterior, é a comunidade científica preocupada com como comunicar melhor com a sociedade e com seus representantes, como governos, Poder Legislativo, Judiciário. É algo que aconteceu no Brasil e no mundo.
O primeiro é negativo, mas o segundo é positivo e tem ajudado a aproximar a ciência das pessoas que pagam impostos.
A resultante dessa combinação de forças é positiva?
Muito, sem a menor dúvida.
Num cenário de pandemia, quando as pessoas não estão só preocupadas com a saúde mas também com ter dinheiro para se alimentar, a credibilidade da ciência aumenta ou diminui?
Eu acho que há, de novo, duas tendências. Por um lado aumenta a expectativa do público sobre como a ciência poderá contribuir para o melhor enfrentamento desta crise terrível. Por outro, a crise é grande e pode gerar uma impaciência do público sobre a velocidade com a qual a ciência pode responder ao desafio.
É importante que a comunidade científica e suas lideranças sejam cuidadosas para não prometer solução a curto prazo em situações em que não se pode dizer isso. O que a gente sabe é que todos vamos sofrer menos se nos basearmos mais na ciência, mas a gente não pode dizer que a ciência vai resolver tudo magicamente.
O senhor avalia que as ações dos governos estão embasadas em ciência?
O que eu tenho visto até agora, no estado de São Paulo e no Brasil, na atuação do Ministério da Saúde, é que foi criada uma estratégia de enfrentamento da crise fortemente baseada em conhecimento científico, o que é muito bom.
Ao mesmo tempo, vemos que, mesmo quando a ciência nos dá orientações, há um caminho entre conhecê-las e implementá-las na sociedade que não depende só da ciência, mas da política. Essa é uma das razões pelas quais não dá para dizer que a ciência resolverá tudo.
Em São Paulo há maior previsibilidade com financiamento para a pesquisa, mas no país não. Há muitos anos ou o orçamento cai ou fica na mesma, sendo corroído pela inflação. Qual a importância dessa previsibilidade para responder a crises?
Aqui em São Paulo construiu-se nas últimas décadas um sistema de ciência e pesquisa e tecnologia que tem certa capacidade de resposta. No resto do Brasil, também houve essa construção, mas às vezes essa resposta é menos ágil porque o problema de financiamento existe especialmente desde 2014.
A questão do financiamento passado é importante, mas não é determinante para a resposta que pode vir agora. O determinante dessa resposta é se o governo brasileiro vai priorizar e apoiar pesquisadores em universidades, hospitais, empresas no Brasil inteiro que querem contribuir num regime de emergência para a crise que se apresenta.
Aí é possível fazer muita coisa, como vemos na UFRJ, na UFRGS. São organizações que sofreram muito com a crise de financiamento, mas, mesmo assim, têm capacidade de oferecer ideias e contribuições importantes.
O principal elemento é a gente entender e valorizar que, mesmo com altos e baixos, o esforço que o Brasil inteiro tem feito nos últimos 60 anos para criar um sistema de pesquisa e para formar pessoas, mostra que somos capazes de oferecer algumas respostas em momentos como o de agora. A permanência, a resiliência desses pesquisadores e dessas instituições compensam a crise financeira recente que tem acontecido, em certa medida.
Como os pesquisadores devem se organizar para dar essa resposta? No nível estadual, nacional ou internacional?
Precisa acontecer em todos os níveis. Se houver iniciativas nos três, nossa vida será melhor no futuro. À medida que um dos níveis se enfraquece, nossa vida fica um pouquinho pior.
No Brasil, uma das grandes deficiências do desenvolvimento do sistema de ciência e tecnologia é um grau irregular e limitado de colaboração ou de cooperação entre iniciativas federais e estaduais. Digo irregular porque houve épocas em que essa interação foi boa e em outras foi ruim.
Em vez de usar o esforço federal para mobilizar recursos locais, muitas vezes se usou recurso federal para substituir recurso local. Em vez de somar, subtrai.
Como o senhor compara a resposta científica dada durante a crise da zika, em 2015, à do novo coronavírus, em 2020?
A crise de agora é muito maior do que aquela. No final dos anos 1990, com o assunto do genoma em voga, pesquisadores sugeriram fazer uma rede sobre diversidade genômica dos vírus. Quando chegou a zika, aqueles mesmos da rede de genômica dos vírus foram capazes de oferecer estratégias para se tratar de alguns aspectos da crise trazida pelo vírus. Agora, esses mesmos e outros estão se envolvendo na resposta contra o coronavírus.
Em cada crise, a instituição aprende com as anteriores e faz, acho eu, um pouquinho melhor.
Como está sendo a resposta à crise atual?
A Fapesp fez um edital para selecionar projetos de pesquisa para tratar do coronavírus com o conceito de rede de acionamento. A crise é tão séria que a gente precisa que os pesquisadores dediquem mais tempo para tratar desse problema atual. E a resposta tem sido excelente.
Não vamos esperar todos os projetos chegarem, mas vamos analisar à medida que eles entram, já que se trata de uma emergência. São R$ 10 milhões para projetos de pesquisa envolvendo universidades e institutos de pesquisa e R$ 20 milhões para os que envolvam empresas.
As parcerias com empresas foram uma marca da sua gestão.
Sim. Uma iniciativa são os centros de Pesquisa em Engenharia, ou Centros de Pesquisa Aplicada. São iniciativas bem mais abrangentes do que projetos curtos que duram dois ou três anos. São centros de pesquisa que podem durar até dez anos se tudo der certo.
Trata-se de um cofinanciamento entre Fapesp, empresa e as universidades onde os pesquisadores estão lotados. O programa foi anunciado em 2014 e está dando muito certo. E olha que desde então só teve crise no Brasil. Nós vamos chegar no número de 14 centros.
Esse programa é o maior programa no Brasil de pesquisa colaborativa entre universidade e empresa. Tem de tudo. Por exemplo, tem o centro com a GlaxoSmithKline, sediado no Instituto Butantan, para descobrir moléculas para fazer remédios; outro é o anunciado no fim do ano passado, com a IBM, sobre inteligência artificial, o primeiro do país.
É um programa ousado, não só em questão de dinheiro (ao todo já são R$ 1,2 bilhão comprometidos) mas porque todos eles tratam em pesquisa avançada. Não é centrinho de consultoria, é para descobrir coisas importantes para o futuro daquela empresa. Foi algo que gostei de fazer.
E tem algo que o sr. gostaria de ter feito e não fez?
Uma coisa que eu gostaria de ter avançado mais é na questão de apoio das instituições aos pesquisadores. É preciso cobrar e exigir que universidades e institutos de pesquisa ofereçam aos pesquisadores serviços profissionais de apoio para preparo, envio e gestão de projetos, incluindo prestação de contas, relatórios e reuniões de equipe.
É um dos pontos em que a gente avançou bastante. Quando comecei, deveria ter uns dez escritórios que apoiavam os pesquisadores de forma profissional e séria. Agora deve ter uns 180, mas precisaria ter muito mais.
Os pesquisadores da Unicamp, USP e Unesp estão competindo com os colegas de Stanford, de Cornell e de Oxford, mas o grau de apoio institucional que esses pesquisadores têm é 50 vezes melhor do que os que existe por aqui.
Quais são seus próximos passos? Volta para a academia? Entrará para a política?
Virar político eu sei que não vou. Vou avaliar as oportunidades e voltar para meu laboratório na Unicamp, trabalhar com meus colegas de lá.
O que o sr. faz para tentar chegar bem até os cem anos?
Atualmente, lavar as mãos [risos]. Antes a gente precisava correr, comer direito etc. Agora precisamos de tudo isso e também lavar as mãos toda hora.