Augusto Santos Silva: Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais?

Populismo e fake news ameaçam jornais e universidades, diz chanceler português.
Foto: Divulgação/Correio da Venezuela
Foto: Divulgação/Correio da Venezuela
Populismo e fake news ameaçam jornais e universidades, diz chanceler português
Augusto Santos Silva, especial para a Ilustríssima, Folha de S. Paulo

 

populismo e a desinformação constituem, hoje, ameaças muito sérias às nossas democracias. Seria um erro funesto ignorá-los.

Na esteira de Jan-Werner Müller, professor do Departamento de Política da Universidade de Princeton (EUA), caracterizo o populismo por sua contestação às elites, seu desprezo pelo pluralismo e sua representação moralista e emocional do povo.

Antielitista, o populismo combate as lideranças políticas e intelectuais, a quem acusa de distância e traição em relação aos anseios e sentimentos dos “de baixo”. Antipluralista, rejeita a diversidade de interesses e opiniões, desqualifica os partidos e as instituições parlamentares e nega o direito à diferença e à dissidência. Moralista, arroga-se o estatuto de representante genuíno e único de um “verdadeiro povo” que ele próprio define, dele excluindo o que lhe pareça contrário e desqualificando-o como falso ou estrangeiro.

Por seu lado, designo como desinformação (fake news) a corrente que põe em causa três distinções fundamentais do jornalismo e em seu lugar cultiva o apelo populista.

A primeira distinção separa a informação da propaganda: esta é legítima, mas não se confunde com aquela, que faz depender o que diz do que apura com o máximo de rigor, objetividade e isenção possível.

A segunda é a distinção entre a notícia e o boato ou o rumor: a notícia não é o fato cru, muito menos o alarido imediato, mas sim o fato identificado, verificado e interpretado segundo regras cognitivas, éticas e profissionais próprias.

A terceira é a separação entre fatos e opiniões: embora a separação não seja estanque, porque as interpretações são situadas e influenciadas, ela constitui uma referência de que se aproximam todos os que entendem que os cidadãos necessitam, ao mesmo tempo, de informação atualizada e criteriosa e de opiniões livres e diversas.

A desinformação abomina estas distinções porque o seu propósito é militante, o seu fim é a inculcação de preconceitos e estereótipos e as suas armas são o recurso à psicologia de massas, a relação emocional com os destinatários e a ilusão de que essa relação não precisa de mediação nem de mediadores.

Por isso mesmo, a desinformação e o populismo alimentam-se um do outro, e ambos representam enorme perigo para a vida pública democrática. Une-os, em particular, o culto do chefe (por contraposição às elites cosmopolitas e abertas), o desamor pela esfera pública e, correlativamente, o desprezo pela racionalidade comunicacional que, como mostrou o filósofo Jürgen Habermas, se funda na argumentação pública entre as partes.

Seria outro erro fatal supor que essa alimentação recíproca entre populismos e fake news seja um perigo somente para os governos, os partidos políticos e as competições eleitorais. Dois outros pilares das democracias maduras se encontram também ameaçados, e a derrocada deles terá consequências devastadoras para a nossa cidadania. Refiro-me ao campo acadêmico (ou universidade, em sentido amplo) e ao jornalismo; ou seja, refiro-me aos intelectuais e à função intelectual.

Em primeiro lugar, o crescimento da influência do populismo e da prática da desinformação deslegitima a razão crítica, entendida como exercício analítico orientado para o conhecimento e dele esperando recursos para a ação reflexiva e o bem comum. Esse crescimento significa (ao mesmo tempo como causa e como efeito) o declínio da cultura científica (como exame crítico segundo protocolos de problematização, observação e prova) e do debate público (como troca de argumentos sujeitos a validações e falsificações cruzadas).

Em segundo lugar, desqualifica o esforço de mediação, a função mediadora e a prática profissional associada a ela.

Pouco haverá de mais contrário ao que pensam e fazem jornalistas, acadêmicos e outros intelectuais do que a ilusão populista do acesso instantâneo e da relação direta entre a pessoa comum e o conhecimento das coisas, como se fosse só necessário crer para que algo existisse, como se fosse possível tomar posição sem saber os dados do problema e, sobretudo, como se essas elites profissionais intrusas da adesão emocional imediata ao chefe fossem não só dispensáveis como também inimigas.

A mediação exige análise técnica, prática profissional e competências próprias, um trabalho que se submete a protocolos de método e deontologia, que se faz em instituições específicas e que prima pela comparação e confrontação de paradigmas e teorias rivais. O populismo e as fake news oferecem a alternativa do faça-você-mesmo-de-uma-só-maneira, em suposta ligação direta com o chefe.

AUTOCRÍTICA

O populismo não nasceu hoje. No sentido preciso que Jan-Werner Müller lhe atribui, e aqui perfilho, o populismo é “a sombra da democracia representativa”.

Como sempre sucede com processos sociais complexos, o incremento da sua projeção pública não se deveu apenas à força própria; elementos disfuncionais realmente existentes nas democracias (como desvios oligárquicos, controles partidários ou défice de transparência perante os cidadãos) ajudaram a impulsionar as críticas populistas às elites alegadamente todo-poderosas ou aos partidos alegadamente indiferentes ao sentir do povo.

Coisa análoga aconteceu com os intelectuais: vários desempenhos negativos desse papel justificaram o ceticismo sobre seus méritos.

Não é possível, portanto, fazer a crítica do anti-intelectualismo populista sem identificar as responsabilidades próprias dos intelectuais.

homem teclando dentro de escada
Ilustração de capa da ‘Ilustríssima’ – Adams Carvalho

Primeiro, a culpa da arrogância, tão típica do “intelectual legislador” moderno, tipificado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017). A ideia de que o intelectual encarnava uma autoridade superior, superlegítima, quase transcendente, cuja razão de ser estaria numa ciência ou numa cultura inacessível às pessoas comuns, teve, como todos sabemos, consequências catastróficas nos séculos 19 e 20.

Os intelectuais que aumentaram deliberadamente o seu próprio distanciamento em relação ao povo não podem queixar-se de que o povo lhes pague em dobro.

Segundo, a culpa da traição. O nome é forte, mas o tempo não está para palavras mansas. Quando, no século passado, muitos acadêmicos, escritores e jornalistas levaram o conceito de “intelectual orgânico” a um limite que nem o próprio filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) havia imaginado, diluíram por completo a capacidade crítica inerente ao seu trabalho. Aceitando tornar-se porta-vozes de ideologias diante das quais abdicavam de qualquer escrutínio e juízo crítico, puseram em xeque o fundamento mesmo da sua condição.

Terceiro, a culpa do descumprimento ostensivo da deontologia profissional. O que tem sido particularmente evidente e grave no jornalismo, onde todos os dias se repetem infrações descaradas a regras básicas de ética e deontologia, como a separação entre fatos e opiniões, o respeito pela intimidade e a vida privada, a obrigação do contraditório ou o dever de prova. Mas também acontece, infelizmente, no próprio meio universitário, onde se sucedem os casos de desleixo ou desprezo pelas regras de método e a confusão entre substância científica e retórica comunicacional.

Quarto, a culpa da autossatisfação. Quando a norma vira ritual e se toma ainda Versalhes por modelo de representação, cultivando pomposamente o espírito de corpo e reclamando permanentemente honrarias e privilégios, quando os jornalistas se acham o centro das notícias e os acadêmicos só falam de uns para os outros, a distância com o restante da sociedade vai-se cavando e a ligação com a cidadania (essencial ao papel do intelectual) vai-se deslaçando.

Em quinto lugar, sintetizando todos, a violência do poder simbólico, tão bem analisada pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002). Como todos os poderes, o poder das academias e, sobretudo, o da mídia, se não limitado nem escrutinado, gera exclusão e opressão. E chega sempre um dia em que os excluídos e os oprimidos se revoltam, mesmo que sob bandeiras erradas e lideranças perversas.

O CAMINHO

Portanto, não é possível fazer a crítica do anti-intelectualismo dos populistas sem fazer a (auto)crítica do intelectualismo dos intelectuais —quando são fechados, autocentrados, arrogantes, quando esquecem suas próprias normas profissionais ou as colocam convenientemente em suspenso.

Em poucas palavras: a primeira condição necessária para enfrentar o anti-intelectualismo é ser humilde na relação com outrem e exigente na relação consigo próprio e o seu ofício.

Há ainda uma segunda condição, igualmente indispensável. É não entrar em modo de negação diante da nova realidade social e comunicacional representada pelas redes sociais. Estas existem, são poderosas e nada indica que sua presença e influência vão regredir. É preciso fazer, portanto, um esforço sério de compreensão.

Comecemos pela comunicação. No princípio, ela era ponto a ponto, quer dizer, pessoa a pessoa, em contextos marcados pela copresença física e a interação direta. Depois, passa a se dar também através de meios de comunicação a distância (como a carta escrita).

A comunicação de massas, que terá seu apogeu no século 20, com a imprensa de distribuição maciça, o rádio e a televisão, multiplicará as audiências: um ponto emissor (o jornal, o canal de rádio ou de televisão) dirige-se a massas de leitores, ouvintes e espectadores. Comunicação ponto-multiponto, pois.

Claro que haveria muitas precisões e modulações a fazer neste esquema demasiado básico; no entanto, para o que aqui nos interessa, ele basta.

O que o modo de comunicação da nova mídia faz é repor formas de interação individualizada ou por grupo, agora em contextos não de copresença física, mas sim de comunicação digital que, no limite, dispensa qualquer outro conhecimento ou contato pessoal.

Depois, as funções de emissão e recepção tornam-se muito mais mescladas, porque a tecnologia permite a multiplicação das fontes de informação e agiliza a retroação de receptores sobre emissores e mediadores.

Finalmente, tudo isso ocorre numa enorme aceleração temporal, podendo ser praticamente instantâneo o acesso a dados e emoções sobre eventos ou pessoas localizadas nos confins do mundo.

As consequências no plano específico da informação e do conhecimento são óbvias. Maior variedade de fontes de informação, multiplicação dos canais de acesso, diversificação e concorrência recíproca das várias instâncias de legitimação, controle e interpretação da informação em circulação —e maior rapidez nesta circulação, em direções cruzadas.

Não são menos importantes os efeitos sobre os padrões de conduta social. De um lado, no que importa à entrada dos “leigos” no mercado de opinião, quer dizer, das pessoas comuns, que se podem reconhecer e ser reconhecidas como produtoras e difusoras de notícias e avaliações sobre a realidade circundante. Do outro, quanto à dependência muito menor dessas pessoas, quer no acesso, quer na interpretação, em relação aos mediadores institucionais ou profissionais, tais como, precisamente, jornais e academias, jornalistas e intelectuais.

No universo comunicacional atual, cada sujeito pode dizer e muitas vezes diz: “Eu sei mais depressa o que se passa, eu próprio posso dizer aos outros o que se passa, eu comento com os outros o que se passa, verifico eu próprio o sentido do que me dizem, eu falo sobre o que se passa, eu faço acontecer o que se passa, através da internet, da Wikipedia, do Facebook, do Twitter, do WhatsApp e de tantas outras aplicações e plataformas que me vão permitindo constituir a minha tribo, os meus pares, os emissores-mediadores-receptores do meu quadro de conhecimento, informação e comunicação; portanto, ouçam-me; e, se não me ouvirem, eu procurarei quem me ouça, neste mesmo quadro, fora das elites sociais e fora das instituições políticas que teimam em ignorar-me, ou tratar-me como se ainda estivéssemos na era da comunicação de ponto a multiponto”.

Faço mais uma vez minhas as palavras de Jan-Werner  Müller: é um erro dramático recusar direitos de cidadania a este mundo e a estes sujeitos das redes sociais; é preciso compreendê-los e falar, não como eles, mas certamente com eles. Não vale a pena imaginar que eles são transitórios, ou vão ficando mais fracos. É realmente o contrário que se passa.

COMBATE

Que fazer, então?

Ter consciência lúcida da complexidade e das dificuldades da situação presente. É um fato que as redes sociais e a nova mídia estão aí, e para ficar. É um fato que elas ampliam o raio de ação e de socialização de cada sujeito social, e isso é coisa positiva.

É também um fato que, pela ilusão da ligação direta entre pessoa e mundo, e entre pessoas-no-mundo, assim como pela ilusão da soberania plena do homem e da mulher comum, aparentemente investidos de um poder de fornecer e recolher informação e formar opinião de que antes não dispunham, as redes sociais constituem um caldo de cultura muito favorável à germinação e à difusão das atitudes e mobilizações populistas, antielitistas e antipluralistas.

Finalmente, é ainda um fato que as redes sociais são especialmente vulneráveis às lógicas e práticas de manipulação por desinformação e tração moralista e emocional.

A questão é, pois: como podemos assumir a existência e a força das novas redes sociais e dos seus modos de comunicação e socialização e tirar vantagem da ampliação das capacidades e poderes das pessoas, sendo ao mesmo tempo eficazes no combate à manipulação que denega a cidadania e faz perigar a democracia, sem cair nos velhos erros da arrogância intelectual?

Na minha opinião, podemos e devemos fazer tudo isto. Se há um veneno que se está espalhando pelo tecido cívico e institucional —o veneno do populismo e da desinformação—, os antídotos a que devemos recorrer são os três seguintes.

Primeiro, defender e praticar uma razão hermenêutica e comunicacional (na linha de pensadores como Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman). Quero dizer uma racionalidade crítica (diante do mundo e de si própria), compreensiva (respeitando e conhecendo os diferentes universos de pensamento) e fundada no diálogo e na argumentação pública. Esse é o melhor antídoto contra o moralismo e o emocionalismo. Esse é o melhor método de escrutínio e verificação dos fatos e dos projetos que circulam à nossa volta.

Segundo, defender e praticar a mediação. Contra a ilusão do imediato, da transparência e da plena evidência, isto é, contra a negação da complexidade das coisas e do trabalho necessário para definir os problemas e encontrar as respostas; e contra a sugestão tipicamente populista de que a “verdade” se daria a ver a si própria sem dificuldade nem questão, só não a atingindo os de condição estrangeira aos sentimentos e identidade do povo.

A informação, que permite dispor de elementos sobre o real, e o conhecimento, que permite interpretá-los, estão certamente ao alcance de todos. Mas no sentido em que todos podem aceder aos resultados e aos instrumentos de um processo intelectual específico, que requer regras, método e labor, que implica um esforço específico de análise e crítica, que requer mediação.

A qual —terceiro antídoto fundamental— não é apenas nem sobretudo tarefa de indivíduos, por mais talentosos que sejam, mas de instituições; ou seja, de indivíduos em instituições. Da imprensa à academia, da escola ao Parlamento, da comunidade local ao Estado, da organização não governamental à entidade pública, a nossa interpretação do real e a nossa ação sobre o real fazem-se em contexto e são tanto mais fortes quanto mais forte for o contexto institucional e os recursos coletivos que ele providencia.

O ser-no-mundo exige conhecer e contatar instituições diversas e plurais; exige respeitar e praticar os meios cognitivos que acrescentam rigor, profundidade e imparcialidade à informação de que todos necessitamos.

Numa palavra: não precisamos de menos, mas de mais intelectuais. De mais acadêmicos, mais professores, mais jornalistas. De mais cultura jornalística —como escrutínio crítico e organizado de fontes diferenciadas de informação— e de mais cultura científica —como forma específica e autodirigida de produzir e circular conhecimento.

Não vejo alternativa. Se queremos combater o populismo e a desinformação, não podemos querer ignorar, muito menos lançar anátema sobre as novas plataformas, tecnologias e modelos de informação e comunicação, e nomeadamente sobre as chamadas redes sociais. Devemos, isto sim, conhecê-las, compreendê-las e frequentá-las.

Não para subordinarmos à sua lógica hegemônica a função própria dos intelectuais no espaço público, mas para mobilizar todo o enorme poder de capacitação crítica que essa função transporta, para revigorar a cidadania e preservar a democracia.

Podem os intelectuais ser substituídos pelas redes sociais? Sem dúvida. Mas só se renunciarem à sua dupla responsabilidade: de conhecer e de agir.


Augusto Santos Silva, 61, doutor em sociologia e professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, é ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Adams Carvalho, 38, é ilustrador.

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