Foram 68 desde que presidente tomou posse; motivos são diversos, mas nada aponta para uma grande articulação entre setores da sociedade
Danielle Brant e Renato Machado, Folha de S. Paulo
A rejeição de setores da sociedade ao governo de Jair Bolsonaro tem se refletido no número de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados: em média, cidadãos brasileiros protocolaram um processo contra o presidente a cada 11 dias.
Foram 68 desde que Bolsonaro tomou posse até a primeira semana de fevereiro. São de uma maneira geral pedidos independentes, apresentados em momentos distintos e por motivações diversas, mas nada que aponte para uma grande articulação entre esses setores da sociedade contra Bolsonaro.
Se por um lado essa situação reflete um descontentamento mais generalizado, por outro, essa pulverização pode ser um fator contra o crescimento da pressão contra o governo.
Nas últimas semanas, houve intensificação nos debates a respeito de um impedimento, principalmente por causa do repique da Covid-19, do colapso da saúde em Manaus e o atraso do Brasil na vacinação.
Chegou-se a cogitar que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) abriria o processo em seus últimos dias à frente da Casa, possibilidade que não se concretizou.
Os pedidos de impeachment foram escritos e protocolados por pessoas das mais diversas regiões.
Há juristas conceituados, como a ex-vice-procuradora-geral da República Deborah Duprat, e dois detentos do estado de São Paulo, que enviaram seus pedidos por cartas. Um deles, João Pedro Bória Caiado de Castro, que cumpre pena em São Vicente, já inclusive havia pedido impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Pessoas de uma mesma família escreveram pedidos, assim como dezenas de artistas reunidos em um movimento social.
No universo político, figura obviamente a oposição, mas também ex-aliados do governo, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP).
O ritmo de pedidos apresentados ganhou força em 2020. No ano anterior, haviam sido cinco, sendo que o primeiro, protocolado em 5 de fevereiro, foi arquivado por Maia.
O restante teve como destino a gaveta do ex-presidente da Câmara —e agora do novo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL)—, formalmente classificados como “em análise”.
As denúncias do primeiro ano de Bolsonaro foram motivadas por episódios controversos, como o fato de o presidente ter compartilhado em uma rede social um vídeo em que um homem urina em outro em um bloco de Carnaval, em prática conhecida como “golden shower”.
Outro processo foi ancorado na decisão de Bolsonaro de comemorar a data do Golpe Militar no país, 31 de março de 1964.
Em 2020, o número de pedidos explodiu: foram 54 —quatro arquivados.
Alguns tiveram os mesmos autores, como o militar aposentado João Carlos Moreira, que protocolou dois. Um deles, de fevereiro do ano passado, tinha como pano de fundo as investigações envolvendo a morte da vereadora Marielle Franco e supostas interferências no caso.
O outro, de março, citava declarações de conotação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, e até o episódio envolvendo o transporte de 39 quilos de cocaína em um avião presidencial.
Bolsonaro também motivou pedidos de impeachment por ter incentivado manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal), por ter declarado que as eleições de 2018 foram fraudadas e por ataques à imprensa.
Há pedidos que criticam a política neoliberal do governo, acusações de práticas de homofobia e de misoginia e incentivo à posse de armas, o que demonstraria a supressão do Estado democrático de direito —o processo foi protocolado em setembro do ano passado, ou seja, bem antes de o governo encaminhar à nova cúpula do Congresso, formada por Lira (Câmara) e Rodrigo Pacheco (Senado) uma lista de pautas prioritárias com pedido para votar projeto que amplia o uso de armamentos.
Boa parte das ações tem relação com ações e omissões de Bolsonaro no combate à pandemia do novo coronavírus. São documentos que criticam a postura negacionista do presidente, ao menosprezar o impacto da Covid-19 e minimizar cuidados para evitar a disseminação do vírus.
Essa foi a motivação de alguns dos pedidos apresentados por PSOL, PT e outros partidos da esquerda.
“Os diversos pedidos refletem as dezenas de crimes já cometidos pelo presidente e também uma posição nossa, de que não há mais possibilidade de um presidente negacionista, responsável direto por 230 mil mortes pela Covid-19, um presidente que incentivou atos autoritários, seguir conduzindo os rumos do Estado brasileiro”, afirma a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), líder do partido na Câmara.
Na avaliação da parlamentar, a correlação de forças piorou na Casa após a vitória de Lira, eleito com a ajuda da promessa de cargos e emendas por parte do governo federal.
Petrone, porém, vê um aumento da pressão popular, principalmente em decorrência do aumento do desemprego e do fim do auxílio emergencial. “Isso, com certeza, vai abrir os olhos do povo em relação a essa necessidade de interromper o presidente da República”, diz.
Mas não é só a oposição que busca abrir processos contra o presidente.
O advogado Adriano Oliveira da Luz, de Cachoeirinha (RS), votou em Bolsonaro e usou suas redes sociais para influenciar eleitores a favor do capitão reformado. Decepcionou-se com algumas de suas ações durante a pandemia e por isso decidiu ingressar com pedidos.
“Tu não tem noção do quanto eu apanhei nas redes sociais por causa do pedido de impeachment”, afirma.
“As pessoas não conseguem ver que não sou contra o presidente e sim contra o que ele fez. Antes era o PT que era uma seita, que não se podia falar mal do Lula. Mas a mesma coisa está acontecendo com eleitores do Bolsonaro”, afirma.
O ato que motivou seu pedido foi a decisão em junho de mudar a forma de divulgação dos dados referentes a mortos em decorrência da Covid-19, omitindo o total de casos registrados em determinado dia. Após pressão, o governo voltou atrás.
Em 2021, já há nove pedidos aguardando análise do novo presidente da Câmara, mas nenhuma sinalização de que o destino será diferente dos demais.
“Evidentemente que sou favorável a qualquer pedido de impeachment, mas agora com esse Congresso nas mãos do centrão e ainda a indicação da lambe-botas Bia Kicis para a CCJ [Comissão de Constituição e Justiça], creio que as chances do presidente sair antes de 2022 diminuíram muito”, diz o cineasta Fernando Meirelles.
O cineasta indicado ao Oscar integra a Coalizão Negra por Direitos, que ingressou com um pedido em agosto de 2020, com base, entre outros motivos, nos ataques de Bolsonaro às instituições democráticas, as ações e omissões do governo durante a pandemia e o racismo no discurso do presidente.
Pela legislação, cabe ao presidente da Câmara decidir, de forma monocrática, se há elementos jurídicos para dar sequência à tramitação do pedido.
O impeachment em seguida só é autorizado a ser aberto com aval de pelo menos dois terços dos deputados (342 de 513) depois de votação em comissão especial. Após a eventual abertura pelo Senado, o presidente é afastado do cargo.