Folha de S. Paulo: AI-5 atingiu pelo menos 1.390 pessoas nos dois primeiros anos

Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.
Foto: Arquivo Nacional
Foto: Arquivo Nacional

Capítulo 1

Por Rubens Valente, Naief Haddad, Marco Rodrigo Almeida e Laíssa Barros, da Folha de S. Paulo

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.

Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o período mais duro da ditadura.

O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos.

Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus em casos como crimes políticos.

Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da Justiça. “Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime”, diz o historiador José Murilo de Carvalho. “O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia.”

No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5, o regime militar passava a ter o poder de fechar o Congresso. Credito Arquivo / Folhapress
No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5. Foto: Folhapress

 

Documentos produzidos pelos militares e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.

De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.

De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho, Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).

Em relação aos documentos militares, a Folha compilou os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.

Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres, incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.

Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos, incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser considerado adversário do governo.

Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o entrevistaram: “O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução”.

Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do “Correio da Manhã”, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos dois primeiros anos da vigência do AI-5.

Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997) foram suspensos. O autor de “Quarup” também acabou sendo preso -a cassação foi revogada posteriormente.

O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador e considerado um dos principais intelectuais do país.

Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço para defesa e duravam poucos dias ou semanas.

Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.

Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados, distribuídos por adversários do político.

As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de 1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.

“Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos”, diz à Folha David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81, apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.

O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.

Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação
Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação

 

Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares para perseguir militantes da esquerda.

A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro, liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.

No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que deu sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de tortura e execução de presos já dominados.

Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.

O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da Comissão Nacional da Verdade.

Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella após ação da polícia em 04 de novembro de 1969
Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella
após ação da polícia em 04 de novembro de 1969 – Reprodução

 

Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência civil também exibia um fôlego crescente.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.

Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo do ano.

No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma “guerra revolucionária”.

“Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas ruas. Era um ambiente de grande tensão”, diz Delfim Netto, à época ministro da Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está vivo.

O ex-ministro critica a linha dura (“extremamente nacionalistas, de uma visão muito curta”). No entanto, ele pondera que a situação do país naquele momento era “bastante complicada”.

Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido contornada. “O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente baixo. Ferviam com qualquer coisa.”

De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009).

Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3 de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. “Quando o Exército deixará de ser um valhacouto de torturadores?”, indagou.

075801_0.tif. Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibi?na (SP), em 11 de outubro de 1968. (Folhapress)
Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibiúna (SP), em 11 de outubro de 1968. Foto: Folhapress

 

Para Delfim, “foi uma provocação inteiramente despropositada”. O discurso “caiu muito mal entre os militares. Foi a gota d”água para o endurecimento do regime”, recorda-se David Lerer, colega de partido e amigo de Moreira Alves.

Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas (1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.

Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena, votaram a favor de Moreira Alves.

No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o Congresso às Forças Armadas.

No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional. Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.

“O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é […] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”, afirmou o vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma preocupação clara com as novas propostas.

É preciso “acabar com estas situações que podem levar o país não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos”, declarou Augusto Rademaker, ministro da Marinha.

Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.

“Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que tinha, eu repetiria o fato”, afirma Delfim, colunista da Folha.

“Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais].”

No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da “revolução brasileira de 31 de março de 1964”, que visavam dar ao país “autêntica ordem democrática”.

Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.

No livro “A Ditadura Envergonhada”, primeiro dos cinco volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim resume o encontro no Laranjeiras:

“Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias.”

O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de outubro de 1969.

Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968.
Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato
conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968. – AJB

 

Três meses depois da decretação do AI-5, permitiu-se a encarregados de inquéritos políticos prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10 dos quais em regime de incomunicabilidade. Segundo Gaspari, colunista da Folha, esses prazos se destinavam a favorecer o trabalho dos torturadores.

Há registros de tortura desde os primeiros dias da ditadura militar, mas a repressão ganhou intensidade após o AI-5, sobretudo no governo de Emílio Médici (1969-1974).

Rompia-se, a partir daí, parte expressiva do apoio civil ao regime. “O AI-5 aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país”, afirma o historiador José Murilo de Carvalho.

Em artigo recém-publicado pela Revista Brasileira de História, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, examina as origens do ato.

De acordo com ele, a perda de prestígio e o isolamento político da ditadura, materializados na derrota na Câmara no caso Moreira Alves, estimularam a resposta autoritária dos agentes militares.

Pressionado à esquerda e à direita, vendo ruir os pilares de seu governo, Costa e Silva aceitou a demanda dos grupos militares mais radicais.

O governo já dispunha de instrumentos para reprimir revolucionários de esquerda. O novo ato autoritário, conclui Sá Motta, se prestava sobretudo a enquadrar dissidentes da própria ditadura, segmentos da elite (Congresso, Judiciário, imprensa, universidades) que apoiaram o golpe de 1964, mas se distanciaram em seguida.

“Se havia ainda dúvida de que o regime era uma ditadura governada por militares, isso cai em 68. Os militares foram ainda mais preponderantes no governo, e os parceiros civis tiveram papel mais apagado. A Arena, que servia para dar algum verniz democrático ao regime, entrou em ostracismo nos anos seguintes.”

O AI-5 teve seu fim em 31 de dezembro de 1978, no governo Ernesto Geisel, em meio ao processo de abertura política. A ditadura, porém, resistiu por mais seis anos.

Colaborou EDMIR FARIAS

 

Cronologia do AI-5
Antes, durante e depois

28 de março de 1968 – O estudante Edson Luís é morto pela Polícia Militar durante protesto no Rio. Sucedem-se manifestações contra a violência policial

16 de abril de 1968 – Trabalhadores de siderúrgica de Contagem (MG) fazem a primeira grande mobilização operária no país desde o golpe de 1964. Acordo põe fim ao movimento no dia 26

17 de abril de 1968 – 68 municípios são considerados áreas de segurança nacional e proibidos de realizar eleições municipais

12 de junho de 1968 – Brigadeiro José Paulo Burnier revela ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho o plano de explodir o gasômetro do Rio, atentado que mataria milhares de pessoas. O objetivo era atribuir a culpa à esquerda. O plano não se consuma devido à recusa do capitão de levá-lo adiante; mais tarde, Carvalho é preso e reformado. O episódio passa a ser conhecido como caso Para-Sar

25 de junho de 1968 – Na manifestação que ficou conhecida como Passeata dos 100 Mil, no Rio, estudantes, artistas e representantes da classe média e da Igreja Católica se opõem à violência policial e pedem a volta da democracia

16 de julho de 1968 – Três meses depois de Contagem, acontece a greve de Osasco (SP). Metalúrgicos e estudantes ocupam a Cobrasma (Companhia Brasileira de Material Ferroviário). Três dias depois, mais de 400 são presos, e reivindicações não são atendidas

2 de setembro de 1968 – Márcio Moreira Alves, deputado federal pelo MDB, faz discurso enfático na Câmara. “Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?”, questiona. Também sugere que a população boicote a parada militar de 7 de setembro

3 de outubro de 1968 – Acontece a Batalha da Maria Antônia. Com bombas, tiros e coquetéis molotov, estudantes do Mackenzie (alguns deles ligados ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas) atacam os estudantes da Filosofia da USP. Esses últimos reagem, mas têm menor poder de fogo. Um jovem, que estava no prédio da Filosofia, é morto

Batalha da Maria Antônia - 1968: Da mesma forma que a esquerda enraizava-se na USP, grupos paramilitares de direita encontraram abrigo no Mackenzie. Nessa universidade, estudavam membros da Frente Anticomunista, do Movimento Anticomunista e do mais famoso e estruturado grupo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). A presença deste foi decisiva para o confronto que aconteceu no dia 2 de outubro. Foto: Acervo UH/Folhapress
Batalha da Maria Antônia – 1968. Foto: Acervo UH/Folhapress

 

12 de outubro de 1968 – Polícia invade sítio em Ibiúna (SP), onde acontece o 30º Congresso da UNE. Mais de 900 estudantes são presos

12 de dezembro de 1968 – Em votação no plenário, marcada por discurso de Mário Covas (MDB-SP), Câmara não suspende a imunidade parlamentar de Moreira Alves. Decisão desagrada ao governo militar, que pretendia processar o deputado

13 de dezembro de 1968 – Após reunião do presidente Costa e Silva com membros do Conselho Nacional de Segurança, entra em vigor o AI-5 (ato institucional número 5), que impõe o recesso do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. A partir daí, o presidente pode intervir em estados e municípios e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão. Habeas corpus também é suspenso

30 de dezembro de 1968 – Sai a primeira lista de cassações, que inclui 11 deputados federais, como Márcio Moreira Alves (MDB-RJ). Ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda tem seus direitos políticos suspensos

16 de janeiro de 1969 – Mais 35 deputados federais são cassados, entre eles Mário Covas (MDB). Lista também inclui dois senadores, Aarão Steinbruck e João Abraão, e três ministros do STF, Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva

25 de janeiro de 1969 – O capitão do Exército Carlos Lamarca foge do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco (SP), levando dezenas de fuzis e metralhadoras

1º de julho de 1969 – Governador Abreu Sodré cria a Oban (Operação Bandeirantes), centro de repressão em São Paulo

31 de agosto de 1969Depois da saída da presidência de Costa e Silva, incapacitado por uma trombose, junta de ministros militares assume o poder

7 de setembro de 1969 – O embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, é libertado após passar quatro dias em poder dos sequestradores, integrantes de movimentos da luta armada. Os 15 presos políticos libertados embarcam para o México

O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: ANODE1969
O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: Acervo

 

18 de setembro de 1969 – O governo aprova nova Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de morte e prisão perpétua

30 de outubro de 1969 – O general Emílio Garrastazu Médici assume a presidência

4 de novembro de 1969 – Carlos Marighella, líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), é morto a tiros em São Paulo

15 de março de 1974 – Ernesto Geisel assume a presidência

25 de outubro de 1975 – O jornalista Vladimir Herzog é morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Seis dias depois, mais de 10 mil pessoas participam de ato ecumênico na Catedral da Sé em memória de Herzog

17 de janeiro de 1976 – O metalúrgico Manuel Fiel Filho morre nas dependências do DOI-Codi. Como ocorreu com Herzog, versão oficial indica suicídio; mais adiante, fica comprovada a morte sob tortura

1º de abril de 1977 – Geisel fecha o Congresso Nacional

13 de outubro de 1978 – Sob o governo Geisel, é promulgada emenda constitucional que revoga todos os atos institucionais e complementares contrários à Constituição. Emenda passa a vigorar em 1º de janeiro de 1979. O AI-5 durou pouco mais de dez anos

Veja as nove páginas do Ato Institucional nº 5

Documento original está no Arquivo Nacional em Brasília

O primeiro ato institucional foi decretado nove dias após o golpe militar de 1964. O segundo foi editado em 1965, e outros dois em 1967. O mais radical e abrangente deles, o AI-5, é de dezembro de 1968. Foi seguido por outros 12 atos, todos decretados em 1969.

pág. 1
O preâmbulo indica a necessidade de manter a “ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana” e a “luta contra a corrupção” como meios para atingir “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil”

pág. 2
Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a “Revolução” iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares

pág. 3
Ao mencionar “fatores perturbadores da ordem”, refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso

pág. 4
Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios

pág. 5
Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, “para preservar a Revolução”, o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos

pág. 6
Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares

pág. 7
O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete “o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”

pág. 8
O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional

pág. 9

Nas duas últimas páginas, estão as assinaturas de Costa e Silva e de 16 dos 24 membros do Conselho de Segurança Nacional

Capítulo 2

“Sacrificamos algumas coisas não fundamentais”, disse Costa e Silva aos EUA sobre o AI-5

Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: FolhapressArthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress

 

Por Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então presidente brasileiro, o general Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia “sacrificado algumas coisas não fundamentais” com o Ato para “preservar as fundamentais”, conforme argumentou. Ele tachou a imprensa de “irresponsável”, os políticos como adversários das “realizações da Revolução”, referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latinoamericanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob “regimes de exceção”.

O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma “completa tranquilidade” no Brasil e que as coisas voltariam “ao estado de normalidade oportunamente”, com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.

Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.

Costa e Silva recebeu Tuthill com “cumprimentos efusivos” e logo “se lançou em um de seus longos monólogos”, ao qual deu um fim abrupto, quando soou “o toque de recolher”, às 18h00. O embaixador reclamou depois que “mal conseguiu encaixar uma palavra”.

Depois de uma introdução “longa e desconexa” sobre os méritos das lentes de contato, o general comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento “confuso” para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em “regime de exceção”. O Uruguai era “um bom vizinho”, mas estava “virtualmente “entregue aos comunistas””, escreveu o embaixador.

O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar “consideravelmente cônscio das críticas dos EUA” sobre o AI-5 e “aparentemente as compreende”. Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma “vida estratificada” e que “não se pode esperar que compreendam os problemas dos países em fase de desenvolvimento”.

Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam “impor seu padrão a qualquer outro país”, mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado “três coisas que eu precisava ter em conta”: “1) As Forças Armadas são a instituição mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente”.

Tuthill contou ter usado essas declarações em seus relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora “vinha acompanhado os atuais desdobramentos com preocupação”. O embaixador indagou à queima-roupa: “O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?”

Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador explicasse “toda a situação” para seus superiores e pontuou que havia “completa tranquilidade” no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu “diversas vezes” na conversa. O general falou do sacrifício “de algumas coisas não fundamentais” e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicação e “a classe política”, a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.

“Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. “Ninguém trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se recusaram a compreender””, escreveu o embaixador.

Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou “das dificuldades que enfrentou”, citando como exemplo o “Correio da Manhã”, jornal do Rio fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada pela ditadura. Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.

Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que “desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o “Correio da Manhã” imprimiu uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon”. “Não existe uma carta como essa. Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o “Correio” teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável (“a de vocês nos EUA é mais responsável”). O “Correio” publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal”, escreveu Tuthill.

Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador “para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob “os outros” (ele estava se referindo presumivelmente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)”.

Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. “É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão em ação em seu país.”

“Direitos deixaram de existir”
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.

Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam “com os programas de assistência” entre os dois países.

Tuthill respondeu que “não havia problema de reconhecimento e que o governo americano não cortaria suas assistência”, mas deixou claro a Magalhães Pinto que “a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia sido muito forte”.

O embaixador pontuou que era necessária “uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos democráticos básicos”. Nesse momento, Magalhães Pinto “concordou rapidamente que esses direitos deixaram de existir”.

Tuthill disse que governo americano cumpriria suas obrigações contratuais, mas “”esperaria para ver” quando a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em negociação no momento”.

Magalhães Pinto ofereceu uma lona explicação sobre os acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que “as pressões vinham crescendo há algum tempo” e que o discurso do então deputado Marcio Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, “não representava mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido”. Depois da votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, “ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o presidente agisse”.

O chanceler disse que “o presidente resistiu”. Tuthill escreveu no telegrama que “outras fontes confirmam”. “Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria “ultrapassado”. Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número 5.”

O chanceler brasileiro argumentou que “a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar”.

Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidade. “O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, “mas a poeira do ato institucional ainda não se assentou”. O maior problema é que as forças armadas consideram a imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin [Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora”, escreveu Tuthill. O Ato só seria extinto dez anos depois.

 

SÃO PAULO CINQUENTA ANOS DEPOIS, O PAÍS ESTÁ LIVRE DO RISCO DE UM NOVO AI 5?

Num exercício teórico -que, se espera, nunca chegue ao plano da prática- a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.

O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões publicas. “As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais”, escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro “A Ditadura Envergonhada”.

Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.

“A experiencia com países autoritários demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país”, diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomunicação a suspender a conexão.

“Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicidade com uma medida de exceção.”

Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.

“Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais”.

Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.

“Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário”, diz.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.

Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa de notícias falsas.

“Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democráticos”, especula.

Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.

“A democracia é um processo de construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicionalmente”, afirma o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da liberdade de expressão.”

 

 

Capítulo 3

‘Brasil perdeu um pedaço da história’, diz deputado cassado na 1ª lista do AI-5

Naief Haddad
SÃO PAULO

Em 1978, o ex-deputado federal pelo MDB paulista David Lerer voltou ao país depois de jornadas pela América do Sul, Europa e África. Havia deixado o Brasil uma década antes com medo de ser preso.

“Nas semanas anteriores ao AI-5 [ato institucional número 5], todos [no Congresso] já sabiam que algo iria acontecer. O ministro Gama e Silva circulava com um rascunho do ato. Era um segredo de polichinelo”, conta ele, também médico aposentado.

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5. Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5.
Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp – Folhapress

 

No dia 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes da reunião da cúpula do governo que sacramentou o AI-5, ele esteve na Câmara, em Brasília. Foi uma passagem rápida porque Lerer e os raros parlamentares que estavam na capital temiam que os militares invadissem o Congresso Nacional a qualquer momento.

Com seu fusca, Lerer saiu em direção a uma agência do Banco do Brasil para sacar todo o dinheiro que tinha. Em seguida, foi ao hotel onde se hospedava para fazer a mala.

Decidiu permanecer em Brasília, mas agora instalado numa casa de estudantes, que estava vazia àquela altura.

Três dias depois, os jipes da Polícia Militar estacionaram em frente à residência. “A PM arrombou a porta e me deu uns tabefes. Eu estava de cueca, me pegaram de samba-canção [risos]. Botei a calça do pijama, peguei minha mala e fui com eles”.

Ele estava na carceragem em Brasília quando saiu a primeira lista de cassações, em 30 de dezembro de 1968. A relação divulgada pelo governo federal trazia dez nomes de deputados federais, entre eles o de Lerer. Além dele, estão vivos Gastone Righi e José Lurtz Sabía, ambos pertencentes ao MDB paulista.

Nas semanas seguintes, outras listas com cassações foram anunciadas pelo regime.

Além das cassações, o endurecimento promovido pelo AI-5 resultou em aposentadorias compulsórias, direitos políticos suspensos e demissões, além de mortes de militantes da esquerda armada.

Liberado pelos policiais em 31 de dezembro, Lerer pegou um ônibus na rodoviária de Brasília dias depois e retornou a São Paulo, onde viviam seus pais. Proibido de atuar na política, voltou a trabalhar como médico.

Não manteve, contudo, uma rotina normal. “Eu via uma farda militar na rua e já ficava aflito”, recorda-se. Era obrigado a se apresentar à Polícia Federal uma vez por semana.

Após a prisão de Hélio Navarro, deputado da oposição cassado como ele, Lerer se deu conta que a sua detenção estava prestes a acontecer. Embora seu passaporte tivesse sido confiscado pelos policiais, ele estava determinado a deixar o país.

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de
dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp –Folhapress

 

Com a ajuda de um amigo advogado gaúcho, passou por Canoas (RS) e Porto Alegre até desembarcar em Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. De lá, incomodado pelo frio intenso, mas não pelos guardas, atravessou a divisa caminhando e chegou a Rivera, no país vizinho.

Nos anos seguintes, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola.

Hoje vive com a mulher, Katia, em São Sebastião, no litoral paulista. Está afastado de atividades partidárias, mas se mantém atento à política.

“Houve um grande desestímulo à juventude [com o AI-5], o sentimento de “podemos mudar o mundo” foi perdido. Entre 1968 e 1978 [período em que vigorou o ato], o Brasil perdeu um pedaço da história”, afirma Lerer. “O vício do autoritarismo se reforçou nessa época.”

 

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