Brasil de Fato*
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) aponta que, neste ano, membros da família Bolsonaro com cargos eletivos estiveram envolvidos na maioria (53,9%) dos ataques à imprensa. De fato, desde que chegou ao Planalto, o presidente e seu entorno têm protagonizado xingamentos, descrédito, sexismos e desrespeito às/aos jornalistas, frequentemente contra comunicadoras.
Seguindo a cartilha dos governantes da extrema direita, a imprensa passa a ser tratada como inimiga e a verdade como versão. Já as ofensas, desde a cúpula do poder, tornam-se o estopim para uma sucessão de ataques coordenados: hordas digitais, políticos do baixo clero e apoiadores/as mimetizam os insultos do líder, com a clara intenção de calar qualquer voz crítica a partir de ofensas pessoais e, no caso das mulheres, claramente sexistas.
Isso acontece no face-a-face e tem crescido enormemente na segurança covarde do anonimato digital.
O Brasil é signatário de acordos internacionais que obrigam o Estado aos “três pês” da segurança de jornalistas: prevenir, proteger e processar/punir qualquer ato de violência contra comunicadores/as. Ora, quando o maior chefe do Estado se torna um dos maiores violadores, a mensagem enviada à sociedade é de permissividade, cumplicidade e impunidade, criando um ambiente altamente hostil e tornando a prática jornalística uma atividade de risco.
Estamos no mês dedicado à denúncia da violência contra jornalistas. Desde 2013, a Organização das Nações Unidas (ONU) institui o 2 de novembro como o Dia Internacional Pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas. O termo jornalista é um guarda-chuva para qualquer pessoa que regularmente produza notícia: o Plano de Ação das Nações Unidas sobre a Segurança de Jornalistas e a Questão da Impunidade explicitamente inclui “trabalhadores de veículos comunitários, cidadãos-jornalistas e outros que possam utilizar novas mídias como meio para alcançar suas audiências”.
A inclusão é justificada por sua importância: são os/as comunicadores/as comunitários/as e independentes que garantem a produção local de notícias, a vigilância contra corrupção no âmbito municipal, a denúncia de poderes paralelos e a observância dos direitos humanos nos territórios. Por serem tão essenciais, a violência contra comunicadores/as comunitários/as gera consequências profundas para a democracia local e tem efeito ainda mais duradouro de silenciamento.
A consequente autocensura nos/as demais comunicadores/as reduz drasticamente a qualidade e a quantidade de informação produzida, já escassa nos rincões do país.
O que o Plano não traz são diretrizes específicas para esses jornalistas não profissionais e que levem em conta suas vulnerabilidades. E são várias: proximidade com alvos de denúncias, condições de trabalho precárias, falta de acesso à equipamentos de segurança, baixa remuneração, falta de apoio jurídico, deficiência na formação profissional, eventual situação legal irregular. Há ainda um aspecto de fundo e de base que se apresenta como um grande obstáculo no reconhecimento da importância e na segurança de jornalistas comunitários/as: o preconceito.
Há historicamente no Brasil estigmas sociais relacionados às mídias comunitárias, às minorias sociais que nelas atuam e aos territórios onde surgem tais mídias. Persiste em nossa sociedade e na mídia hegemônica uma visão preconceituosa de que a comunicação comunitária não é confiável e de que sua produção jornalística, por não ser profissional, carece de credibilidade e precisão.
A nosso ver isso também está relacionado aos preconceitos contra as minorias sociais que normalmente as protagonizam: negros e negras, mulheres, jovens e adolescentes, população pobre. Colados a tais estigmas também estão todos os preconceitos direcionados aos territórios onde normalmente surgem as mídias comunitárias: ocupações urbanas, áreas rurais, bairros periféricos, favelas.
Isso é particularmente importante numa cidade partida e geograficamente estratificada como o Rio de Janeiro, em que a garantia de direitos é espacialmente determinada e que o Estado tende a ser ágil e eficaz na efetivação de direitos das áreas mais ricas e a se ausentar das áreas mais pobres, fazendo-se presente somente através dos seus agentes de segurança.
Tudo isso ficou demonstrado no triste episódio em que Bolsonaro acusou Lula de ter se reunido com chefes do narcotráfico em sua visita ao Complexo do Alemão.
Tal mentira foi o berrante para que suas milícias digitais destilassem racismos e preconceitos contra a favela e suas vozes. Na verdade, o petista fizera uma caminhada na região em um ato de campanha organizado por lideranças comunitárias. Dentre elas, Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades, uma das mídias comunitárias de maior sucesso e legitimidade no Brasil.
O fim do governo Bolsonaro traz um sopro de esperança na luta por respeito, valorização e segurança na atuação jornalística no Brasil. Do Estado brasileiro, espera-se não só o fim dos ataques, mas o pleno cumprimento de seu papel triplo, inclusive quanto às mídias comunitárias. Do novo governo, seguindo o positivo aceno na campanha, esperam-se ações efetivas pelo fortalecimento do jornalismo comunitário, popular e de base. Porque é desde aí que se reconstrói a democracia tão atacada nos últimos tempos.
*Adriana Maria é jornalista e coordenadora do Criar Brasil; João Paulo Malerba é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e colaborador do Criar Brasil; Isabelle Gomes é mestra e jornalista do Criar Brasil e Rosangela Fernandes é doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Criar Brasil.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.