Somava ao conhecimento acadêmico características que nos embebeciam
Logo que recebi o pedido da Folha para me manifestar sobre Paul Singer fiquei pensando: o que o caracterizou como intelectual? Não tenho dúvidas, seu rigor metódico, seu amor aos dados, à pesquisa, e o nunca haver perdido a noção de que a economia, como as demais ciências sociais, não dispensa o olhar do humanista. Intelectual politicamente engajado, nunca o foi em detrimento dos valores que mencionei.
Talvez sua melhor contribuição no plano acadêmico tenha sido a junção entre economia, demografia e sociologia. Os livros que o tornaram inicialmente conhecido provêm deste encontro de vertentes: “Dinâmica Populacional e Desenvolvimento”, de 1970, e “Economia Política da Urbanização”, este publicado pela editora Brasiliense em 1973. Na época da publicação destes livros, Paul já trabalhava no Cebrap, em estreito contato com a pioneira em vários setores da demografia brasileira, Elza Berquó, e já se dedicara aos estudos urbanos. Graduara-se em 1966 como doutor em sociologia, sob a orientação de Florestan Fernandes, publicando, poucos anos depois, “Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana”, onde analisa a evolução de cinco cidades brasileiras. Entre 1966 e 1967, estudara demografia em Princeton.
Mencionar seus primeiros livros não quer dizer que Paul Singer haja deixado de lado, no correr do tempo, sua curiosidade e a atração por temas novos. Os estudos sobre economia solidária, recheados pela experiência política como secretário do Planejamento da cidade de São Paulo no período de Luiza Erundina e, mais tarde, como secretário Nacional de Economia Solidária, no Ministério do Trabalho, função que exerceu a partir de 2003, levaram-no a ser um dos iniciadores deste tipo de análise. Sua ação e suas publicações neste novo campo deram-lhe, inclusive, amplas conexões intelectuais com os que se dedicaram a vislumbrar formas de trabalho que, mesmo inseridas nas economias capitalistas, não fossem motivadas nem engendradas apenas pela volúpia do lucro.
Ao ressaltar as contribuições de Paul na interface da economia com a demografia ou com o urbanismo não desdenho, tampouco, sua formação como economista. Graduado pela FEA, onde, posteriormente, foi professor (compulsoriamente afastado do ensino em 1969, como eu e muitos mais) desde sempre se preocupou com conhecer melhor as engrenagens do sistema capitalista e de suas evoluções. Quando, ainda nos anos 50, formou-se um grupo de jovens assistentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP para ler sistematicamente a obra de Marx, não só “O Capital”, mas também os densos volumes da “História Crítica da Mais-Valia”, ele se juntou a nós e era quem mais sabia economia. Os que cursáramos ciências sociais tínhamos algum conhecimento, posto que àquela altura a disciplina era obrigatória. Eu mesmo, nomeado em 1953 assistente da cadeira de História Econômica da FEA, segui alguns os cursos lá para melhor entender o conteúdo da disciplina em que iria trabalhar.
Paul Singer, entretanto, somava ao conhecimento acadêmico duas características que nos embebeciam: trabalhara em uma fábrica de elevadores (pois se tinha formado como eletrotécnico no curso profissional secundário) e havia sido militante sindical. Ideal da época: juntava teoria e prática. O grupo que lera “O Capital” discutia os textos com paixão acadêmica, mas tinha pouca experiência política, com a exceção dele e minha. Paul havia sido membro do movimento a favor dos kibutzim israelenses (o Dror) e no Partido Socialista e eu pertencera ao Partidão de 1949 a 1954. Em nossas acaloradas discussões, nas quais debatíamos se haveria uma “antropologia fundante” para sustentar o marxismo (posição, notadamente, de Bento Prado) ou se seria melhor vê-lo como um “sistema objetivo” no qual as relações de produção fundamentariam sua própria lógica (com José Arthur Giannotti à frente), Singer era o ponto de sensatez. Destrinchava no texto em alemão as complicadas explicações de Marx e nos obrigava a aterrissar nelas, não se esquecendo de puxar a brasa para sua sardinha: haveria que desembocar em uma ação política que levasse à transformação da situação vigente.
Neste momento de recordação quero marcar também a figura humana. Sempre educado e atento, muitas vezes travestido de ingênuo, Paulo —eu nunca o chamei de Paul— era uma doce figura. Trabalhamos juntos anos a fio no Cebrap. Conheci sua primeira mulher, Evelyne, tanto no Brasil como no Chile e na França, foi a mãe do André (que nasceu na mesma maternidade e no mesmo dia em que nasceu minha filha Luciana). Fui amigo da Melanie, sua segunda esposa, com quem partilhamos tantas vezes os jantares e vez por outra as partidas de pôquer, que Paulo, como eu e outro grande amigo, Cândido Procópio de Camargo, gostávamos de jogar. Deixa saudades.
* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da República (1995-2002)