Esse é o melhor caminho de que dispomos para conduzir as reformas
Um dos mantras preferidos do governo é afirmar a autonomia do Congresso. Quem gosta do governo diz que se trata de respeito às instituições; quem não gosta diz que é desleixo ou incompetência. Ambas as opiniões valem pouco em um debate complexo como esse.
É fato que o Parlamento assumiu um novo protagonismo na democracia brasileira. O governo não perdeu propriamente a condução da pauta política. Estão aí o plano Mais Brasil e as três PECs, bem como o projeto de autonomia do Banco Central. E Rodrigo Maia já disse que a reforma administrativa não anda se o governo não assumir a paternidade.
Mas estamos diante de um novo modelo. A equação anterior, em que o governo distribuía a máquina púbica para obter maioria no Congresso, simplesmente se esgotou. Em nosso quadro de extrema fragmentação partidária, tudo ficou caro demais. Haverá tempo para um diagnóstico cuidadoso disso tudo.
O conceito que bem define o novo cenário é a corresponsabilidade. Podem-se buscar outros nomes, mas é disso que se trata. Equação feita de tensões e maiorias provisórias. Consensos construídos a cada projeto. Foi o que se viu nesta semana, no acordo em torno do orçamento impositivo.
A pergunta é se tudo isso faz bem à democracia e favorece a governabilidade do país. Para a democracia não me parece haver dúvidas. O argumento da coalizão majoritária, nos moldes praticados desde a redemocratização, parte de duas premissas frágeis.
A primeira atribui demasiada racionalidade ao Executivo. É o argumento do Executivo-príncipe. Quando lembro do plano Collor, dos desmandos fiscais de meados da década passada, ou mesmo da atual “agenda conservadora”, o argumento me parece perturbador.
Uma das funções essenciais do Parlamento é exatamente conter o Executivo. Isso é bom para a democracia. Não há lógica em quem ataca dia e noite a agenda do governo e, ato seguinte, reclama que o governo não tem maioria no Congresso.
A segunda fragilidade é atribuir virtude aos instrumentos constitucionais colocados à disposição do presidente para formar base, no modelo habitual de coalizão. Distribuir emendas e cargos aos deputados amigos é reproduzir cansativamente nosso surrado patrimonialismo político.
Pode-se conceber, em abstrato, a ideia de uma coalizão em bases programáticas. Quando, exatamente, isso aconteceu? Em momentos de ruptura, como no governo Itamar? No primeiro mandato de Fernando Henrique, como li recentemente? É possível que no futuro andemos nessa direção, mas não sem uma mudança de incentivos institucionais. A reforma política que não está no horizonte de ninguém.
Quanto à governabilidade, Christopher Garman sugere uma visão positiva do protagonismo parlamentar. As restrições da PEC do Teto e o avanço do Parlamento sobre a execução orçamentária tornariam racional para a liderança legislativa apoiar a agenda reformista, além de algum incentivo à responsabilidade fiscal.
Boa tese, ainda que enfrente um problema de ação coletiva. É preciso coordenar a ação de uma base fluda de 17 partidos, 400 parlamentares e uma profusão de interesses paroquiais. Com a execução obrigatória de emendas e sem cargos no varejo, para que mesmo lealdade ao governo?
A melhor posição para o parlamentar seria a do “caroneiro”. Podendo colher um ganho coletivo com as reformas e deixar que os outros assumam o ônus de medidas impopulares, por que não? Não foi por isso que estados e municípios ficaram de fora da reforma da Previdência?
Não penso que exista um modelo comparável globalmente para saber o destino da atual experiência brasileira. O governo Bolsonaro não é minoritário no Congresso. É apenas inorgânico, mas com uma agenda que vem se mostrando majoritária nos temas cruciais.
Seu maior erro seria precisamente tentar fazer o que até hoje nunca se dispôs ou teve capacidade para fazer: vincular o apoio à agenda econômica à lealdade ao governo. Sua melhor chance é manter a distância e a fluidez da base, ao contrário do que muitos pregam.
Por fim, um dado pragmático. O governo não irá mudar seu modo de condução política. Se o protagonismo do Congresso não é o melhor caminho para a viabilidade das reformas nestes tempos de incerteza, diria que é o único caminho do qual dispomos.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.