Sucesso é obter alto grau de imunidade e simultaneamente minimizar número de mortes
Nas últimas semanas a dura realidade antevista pelos cientistas se concretizou: não vai ser possível impedir o espalhamento do coronavírus pelo planeta. Ele chega em uma onda avassaladora, o número de casos e de mortes aumenta rapidamente e está provocando o colapso do sistema de saúde. A única medida capaz de amenizar esse colapso é o isolamento social. O isolamento espalha o número de casos da Covid-19 ao longo do tempo, diminuindo a sobrecarga no sistema de saúde e o número total de mortes (o tal achatamento da curva). Essa medida foi implementada pelos governantes mais esclarecidos, que estão colhendo os frutos.
Mas a ciência tem mais a oferecer para lidar com a pandemia após a primeira onda. São esses conhecimentos que vão nos permitir escolher a melhor estratégia para sair da crise. O indicador de sucesso é simples de enunciar, mas difícil de executar. Sucesso consiste em obter rapidamente um alto grau de imunidade de rebanho na população e simultaneamente minimizar o número de mortes. O país que conseguir se guiar por esse índice sairá antes da crise com o mínimo de mortes.
Quando um novo vírus ataca uma população, ele só deixa de se espalhar quando não encontra mais pessoas para infectar. Isso ocorre quando uma parte razoável da população se torna imune. Na medida em que o número de pessoas que foram infectadas e curadas se tornarem imunes, ficará mais difícil para o vírus achar novas vítimas. Quando esse número chega a aproximadamente 80% da população, a pandemia simplesmente desaparece.
O isolamento social tem a função de retardar o espalhamento para ganharmos tempo, diminuindo o pico e dando tempo para nos organizarmos. Entretanto, a longo prazo, a pandemia só acaba quando 80% das pessoas estiverem imunes. As vacinas têm o papel de aumentar o número de pessoas resistentes para 80% ou 100% sem que a pessoa seja infectada de fato pelo vírus. Infelizmente ela ainda não existe.
E remédios que curam a doença têm o papel de permitir que todos os infectados não sofram uma forma forte da doença, se tornando resistentes ao vírus sem o risco de morrer. Infelizmente ainda não temos esse remédio. Mas os cientistas concordam que antes de 80% das pessoas se tornarem imunes o vírus não será controlado.
Esse fato não tem sido discutido fora dos meios acadêmicos. A razão é que os governos não querem provocar o pânico na população, afirmando que todos acabaremos infectados. Outra razão é que governantes cientificamente despreparados têm dificuldade para aceitar a realidade, preferindo viver de ilusões. Quando Ângela Merkel afirmou semanas atrás que 70% dos alemães seriam infectados, essa foi a razão de sua afirmação. Ela é a única líder mundial com formação científica. Essa semana nosso ministro da Saúde repetiu a informação.
A questão é como chegar a 80% de pessoas infectadas evitando o maior número de mortes. O que pode nos ajudar a trilhar esse caminho de maneira segura e com menos mortes? Vamos assumir que uma vacina e um remédio certeiro não cheguem a tempo, pois nesse caso o cenário é outro.
A primeira medida é conseguir tratar todos os doentes sérios. Para isso o mais importante é não relaxar o distanciamento social antes do tempo, o que pode levar ao aparecimento de uma segunda onda de casos e uma nova fase de distanciamento. Isso seria trágico.
A segunda providência é medir periodicamente a fração de pessoas que já foram infectadas e estão imune ao vírus. Como existem muitos casos assintomáticos ou com poucos sintomas, não podemos confiar no número de casos identificados na porta dos hospitais ou testados quando os sintomas aparecem. É preciso medir diretamente a fração da população que já está imune.
Isso pode ser feito escolhendo pessoas ao acaso, testando-as e descobrindo quantas já estão imunes ao vírus. É um método parecido com o usado em pesquisas eleitorais (veja meu último artigo para saber os detalhes). Esses dados vão nos permitir saber como estamos caminhando em direção ao objetivo de 80% de pessoas imunes. Esses estudos estão sendo planejados tanto por um grupo no Rio Grande do Sul quanto por um grupo em São Paulo.
A terceira medida importante é acompanhar e divulgar as melhores práticas de tratamento dos casos mais graves. Só agora os médicos brasileiros estão frente a frente com casos graves da doença e é bem sabido que os protocolos de tratamento vão melhorando a cada dia à medida que pequenas mudanças incrementais no tratamento forem sendo adotadas nos hospitais e unidades de terapia intensiva.
São medicamentos que ajudam um pouco, novos procedimentos, e assim por diante. Esse progresso incremental é inexorável e pode reduzir bastante o número de óbitos. Por isso é muito importante que os melhores hospitais do Brasil compartilhem rapidamente suas experiências com toda a rede. Isso vai salvar vidas nos grupos de risco.
Finalmente é importante nos organizarmos para que as pessoas dos grupos de risco sejam as últimas a serem infectadas. Idealmente eles não deveriam chegar aos hospitais antes da primeira onda já ter passado, pois só então os hospitais estarão menos afogados. Além disso, se forem os últimos a sofrer a doença, chegarão aos hospitais quando nossos médicos já terão aprendido a administrar os casos graves, e a letalidade desses casos já terá diminuído. Portanto é preciso isolar com especial cuidado as pessoas desses grupos. Temos de garantir que serão as últimas a serem alcançadas pelo vírus, mas não podemos nos iludir que serão poupadas.
Esse é o rascunho da receita geral e dos indicadores que estão sendo usados para lidar com a pandemia nos países com uma cultura científica sólida. Fazer isso no Brasil é um enorme desafio, pois, como sempre me lembram os leitores, falar é fácil, fazer é que são elas. Os países que melhor executarem essas estratégias serão os vencedores.