Aos derrotados cabe cobrar dos eleitos respeito às leis
“Ninguém poderia esperar que um candidato marxista venceria uma eleição pelo voto universal, secreto e burguês.” Esta, a manchete do conservador “El Mercúrio” após a vitória de Salvador Allende no segundo turno da eleição presidencial chilena de 1970.
Urnas continuam a produzir resultados inesperados, difíceis de tragar para os derrotados. É da natureza da democracia: nenhuma opção pode ser descartada de antemão. O eleitor é soberano e não precisa explicar porque fez esta ou aquela escolha.
O paradoxal é que Bolsonaro foi eleito por um método pelo qual não tem o menor apreço. A sua rejeição à democracia vai além da desconfiança que nutre às urnas eletrônicas, que acredita serem programadas por petistas infiltrados no TSE e teleguiados por uma central sediada no Equador. A rejeição é mais profunda: Bolsonaro prefere um regime militar.
Em um de seus últimos programas de TV, o locutor afirmou que o governo Bolsonaro corrigiria os erros dos últimos 30 anos. Ou seja, os desacertos começaram quando os militares cederam o poder aos civis e a Constituição foi reescrita. A rejeição ao PT é parte da condenação do regime no qual o partido cresceu e chegou ao poder. Quando entrou na política, Bolsonaro queria fuzilar FHC.
Na cabeça do presidente eleito, formatada nos anos 60 do século passado, corrupção e dissolução moral seriam traços indissociáveis de regimes democráticos. O transplante do discurso da Guerra Fria para o mundo atual pediu algumas adaptações, mas o ideário do capitão continua pautado pelo “perigo vermelho”. Nas suas categorias, esquerdistas não passam de vagabundos, isto é, merecem o mesmo tratamento que bandidos. Foi isto que prometeu fazer ao discursar para seus seguidores reunidos na Paulista.
Eduardo Bolsonaro, seu filho e deputado reeleito, pelo que disse em vídeo vazado, não dispensaria tratamento diverso ao Supremo Tribunal Federal, se este viesse a criar embaraços. Para os Bolsonaro, não há nada que não possa ser resolvido por cabos e sargentos armados – e isto sem querer desmerecer cabos e sargentos, apressou-se em esclarecer o deputado reeleito. Para dizer o mínimo, Eduardo Bolsonaro desaprova delicadezas e requintes próprios às relações civis. O cartão de visitas do deputado vem com os dizeres: “E aí, vai encarar?”.
Os excessos verbais de domingo retrasado e o vídeo do filho custaram alguns votos a Bolsonaro, como as pesquisas do meio da semana captaram. Foi o que bastou para que o capitão adaptasse seu discurso, visando garantir a vitória. Em entrevista, pregou a conciliação, afirmando que governará para todos, que nunca lhe havia passado pela cabeça perseguir ninguém.
O episódio revela o oportunismo eleitoral do capitão. Não há razão alguma para acreditar no “Bolsonaro paz e amor” do meio da semana. Quando sincero, quando não calcula votos a ganhar, o capitão diz que vai varrer do mapa todos os que não rezam por sua cartilha. Foi isto que ensinou ao filho que, por sua vez, passou a mensagem adiante aos seus estudantes. É assim que, de acordo com o credo do presidente eleito, autoridades deveriam proceder.
No início da disputa, Bolsonaro não mostrou qualquer disposição para moderar seu discurso e fazer concessões. Entrevistado no “Roda Viva”, fez questão de declarar, entre risos, sua idolatria por um torturador. Em geral, candidatos radicais não ganham eleições. Sem moderação, sem conquistar o centro, sem acordos e concessões, não se obtém a maioria dos votos. Bolsonaro não fez uma coisa nem outra e, ainda assim, venceu a eleição.
Só há uma explicação para o paradoxo: o candidato foi favorecido pelo atentado que lhe garantiu exposição na mídia sem fazer campanha. Foi um presente, uma dádiva salvadora. Bolsonaro cresceu nas pesquisas enquanto lutava pela vida em uma cama de hospital.
Foi silenciado pelas circunstâncias. Sua única esperteza foi mandar que seus colaboradores fizessem o mesmo. E, assim, operando no modo silencioso, o candidato atraiu para si todas as insatisfações e rejeições acumuladas nos últimos anos.
Bolsonaro não reviu suas posições para obter votos, apenas as escondeu. A votação expressiva obtida no primeiro turno lhe garantiu a possibilidade de se manter calado, evitando debates e o compromisso com propostas concretas.
Assim, Bolsonaro chega à Presidência porque pode jogar parado, porque pode deixar o que realmente defende debaixo do tapete. Perdeu votos quando sentiu a faixa no ombro e deixou de esconder o que pensa e o que pretende fazer. Não precisou fazer concessões para ganhar e não será após a vitória que encontrará razões para fazê-lo.
Não há pílula a dourar. O resultado da eleição é o anúncio de um desastre. Assumirá a Presidência um cidadão sem qualquer preparo para o exercício do cargo e que chancela em gênero, número e grau as palavras que seu filho pronunciou no vídeo vazado. Este, o presidente escolhido para exercer o poder por quatro anos.
O pequeno grupo que o cerca não oferece garantias de que a sobriedade e a ponderação prevalecerão. Pouco se sabe sobre seus auxiliares e menos ainda das propostas concretas que defendem. A revoada dos usuais amigos dos amigos em busca de influência junto ao governo já começou. Está aberta a temporada de captura da máquina pública pelos interesses organizados.
Quanto à economia, sabe-se apenas que o candidato contratou um guru para conquistar a simpatia do mercado. Gurus, como também se sabe, vendem terrenos no paraíso para conquistar seguidores. Para gerir a economia pede-se mais do que a fé nas leis de mercado e a adesão à responsabilidade fiscal.
Serão anos difíceis. A alternativa que resta aos derrotados é cobrar dos governantes eleitos serenidade e respeito às leis. Só assim, daqui a quatro anos, encontraremos urnas, e não cabos e sargentos, nas seções eleitorais.
*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.