Um partido pode mudar de nome, mas de pouco adianta se não atualizar propósitos e práticas
No mês passado o PSDB, em congresso nacional, elegeu nova direção, que terá tarefa pesada: atualizar as diretrizes e, principalmente, as práticas do partido. Isso no momento em que o Brasil passa por uma tempestade e requer renovação. Com efeito, na recente eleição presidencial a marreta cega da História destruiu o que já estava nos escombros: o sistema político e partidário criado a partir da Constituição de 1988, que com o tempo se foi deformando. O País percebeu que as bases de sustentação do sistema partidário e eleitoral estavam em decomposição. Organizações empresariais, partidos e segmentos da sociedade civil chafurdavam na teia escusa da corrupção para sustentar o poder e obter vantagens.
Pode ter havido injustiças e exagero da parte de delatores e mesmo de “salvadores da pátria”. Mas o certo é que as más práticas atingiram o cerne do sistema de poder e levaram o povo à descrença. O governo atual nasceu desse sentimento e da insegurança pela presença crescente do crime organizado e da falta de bem-estar, agravada pela crise econômica. A campanha foi plena de negatividade: não à corrupção, não ao crime, não ao “sistema”. Mas rala na positividade sobre o que fazer para construir um sistema político melhor.
Reconhecer esta realidade implica fazer o mea-culpa da parte que cabe aos políticos do “velho sistema”. Mais do que isso, reconstruir a crença em mecanismos capazes de reforçar a democracia e levar o País a um crescimento econômico que propicie bem-estar à maioria da população. Será possível?
Essa é a tarefa pesada dos que se dedicam à política e não acreditam que basta o “carisma” ou a mensagem salvadora de um demagogo. Pior ainda quando a sociedade dispõe dos meios de comunicação para as pessoas se relacionarem saltando organizações, partidos incluídos. O “movimento” é desencadeado pelo contágio eventual provocado por uma mensagem que dispara nas redes. Basta ver a dor de cabeça que a última greve dos caminhoneiros deu ao governo, que não tinha sindicatos nem partidos com quem negociar. Não deve ser diferente do que está acontecendo na França com o movimento dos “coletes amarelos”.
O Estado e o poder do governo, contudo, não se coadunam com estímulos frequentes, às vezes erráticos, que partem das redes sociais. Requerem organização e alguma estabilidade para a implantação de políticas. Daí que, a despeito de as sociedades atuarem “em redes”, os partidos e o próprio Estado continuem sendo necessários à política. Não os partidos “como eram antes”, nem sem que haja o reencantamento da política. Árdua tarefa!
Com que meios preencher o vazio político e evitar, ao mesmo tempo, o predomínio do mero arbítrio dos poderosos? Vê-se no dia a dia o desencontro entre setores do governo – os da área econômica, os com experiência da disciplina e dos valores militares, os intoxicados por ideologias retrógradas e os que veem conspirações anticristãs, antiocidentais, etc. E, principalmente, entre o governo e partes da população. Disso deriva a sensação de que vivemos momentos de crise até mesmo institucional. Começam a aparecer propostas, umas tresloucadas (é só esperar e… haverá mais um impeachment, imaginam), outras mais institucionais (preparemo-nos para o… parlamentarismo), e no meio tempo, aos trancos e barrancos, a máquina pública anda, mas tão devagar que dá a sensação de estar quase parando e o País perdendo a corrida global.
Sem trombetear alarmismo e depois de reconhecerem que falharam, os partidos – em particular o PSDB –, devem pôr os pés no chão. O caminho mais imediato e disponível para religar o poder aos eleitores seria mudar a legislação eleitoral e instituir o voto distrital misto. Há projetos em andamento no Congresso que poderiam ser aprovados antes das próximas eleições municipais. Esse é o passo viável, por duas razões fundamentais: cabe aos parlamentares federais tomar a decisão, que não afetará de imediato o futuro de cada um deles, mas, sim, o dos vereadores, o que facilita a aprovação. Segundo, no nível municipal é mais visível a teia que liga os vereadores com os eleitores, mecanismo indispensável para fortalecer os partidos. Sem tais vínculos a tarefa de governar se confunde com a de formar coligações ocas. Mais ainda: a experiência mostra que querer resolver tudo de uma só vez mais desorganiza do que institui novas práticas. Melhor, pois, antes de falar em parlamentarismo fortalecer os partidos, mudando a circunscrição em que os representantes disputarão o eleitorado.
Além das medidas já aprovadas que dificultam a criação de partidos – os quais no geral são mais sopas de letras do que instituições para orientar o voto do eleitor –, é conveniente aumentar as exigências doutrinárias para a sua formação. Os partidos, para sobreviverem, terão de ser capazes de viver “nas redes” e explicitar a que vieram para além delas. Um partido como o PSDB pode mudar de nome, mas de pouco adianta se não atualizar seus propósitos e práticas.
Hoje, quando não há mais “muros de Berlim”, os partidos podem proclamar que o Estado não deve substituir o mercado e que este não resolve, por si, os problemas da desigualdade. E deveriam saber que, sem aceitar a diversidade e a regra da maioria, as ditaduras podem chegar longe na economia. Mas, vivendo como nós nos ares da liberdade, a troca não vale a pena, mesmo que traga solução rápida do crescimento e, com ele, a da pobreza: seu custo humano e político é muito alto.
Democracia, crescimento, emprego, inclusão social e segurança são os temas a serem enfrentados. Se um partido sozinho não consegue transformar esses ideais em políticas públicas, que faça alianças e crie força formando parte de um centro progressista que aponte ao eleitorado o rumo do futuro.
*Sociólogo, foi presidente da República