Insistirá o governo do Brasil no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia?
O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem leu o texto recente de Rubens Ricupero sobre a política externa do governo Bolsonaro perceberá os descaminhos pelos quais poderemos enveredar. Diante dos ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-ideológico observadas desde José Sarney até Michel Temer. Basta ler o livro Um Diplomata a Serviço do Estado, do embaixador Rubens Barbosa, para ver que se manteve certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo.
Historicamente a condução da nossa política externa obedeceu a linhas de continuidade, com raras exceções em períodos não democráticos. É ao barão do Rio Branco que se atribui a noção de que deveríamos manter boas relações com os Estados Unidos para fazer o que nos convém na área que nos toca mais de perto, a América do Sul. Na guerra contra o nazismo até bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no Brasil. Mas foi um momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em regra, nunca houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos. Mesmo na guerra fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista, buscamos manter certa autonomia.
Com a globalização muita coisa mudou no ambiente político e, sobretudo, na interconexão econômica dos países. A diplomacia brasileira, porém, não deixou de se orientar pelo interesse nacional. Em artigo recente publicado neste espaço disse que o atual governo abusa da inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse “abuso da inconsistência” na política externa?
Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas da nova página que se está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a China. A aceitação recíproca, obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às teorias sobre o “socialismo harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa a mudar. Os chineses queriam evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de nova potência levaria a guerras com o antigo hegemon. Assim, o país abriu a sua economia para capitais internacionais o usarem como plataforma de exportação e se tornou o principal financiador do déficit comercial dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa estratégia assegurou tempo e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse o mercado interno e investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a liderança tecnológica com suas rivais americanas.
Estamos chegando a uma profunda revisão dessas políticas, adotadas quando a coincidência de interesses prevaleceu sobre a rivalidade, em ambas as partes. A luta tecnológica pelo predomínio no mundo globalizado pode produzir surpresas desagradáveis. Por trás da retórica arrogante e aparentemente desconexa de Trump existe uma luta real pelo predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um sintoma dessa disputa nas tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no campo da segurança. As tensões no Pacífico, do sul da costa chinesa ao litoral do Vietnã, são a face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências. O antagonismo ainda é mais agudo no ciberespaço, onde batalhas são travadas diariamente.
Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em assumir a priori um dos lados da disputa? Os que sustentam que devemos alinhar-nos em tudo à Casa Branca desconhecem que a sociedade americana é democrática e seu atual ocupante não expressa necessariamente um consenso duradouro. Vamos transferir a embaixada em Israel de Tel-Aviv, contrariando nossa histórica pregação em favor de dois Estados naquela região do Oriente Médio?
E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita de “globalismo”, do qual ela seria o instrumento? A única consequência prática é macular a imagem do Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto o são os direitos humanos, o meio ambiente e a imigração. O dano à imagem do País, uma vez cristalizado, terá consequências contra os nossos interesses, como já se deram conta os setores mais lúcidos do empresariado brasileiro.
Insistirá o governo no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as consequências dessa reviravolta seriam mais nocivas que na nossa vizinhança. A crise da Venezuela se aprofunda. O caso remete à “política do barão”, pois mexe com nossos interesses mais imediatos, na América do Sul. É de louvar a prudência dos militares, mas é de temer a vocalização de alguns líderes políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o governo Maduro é antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me manifestado publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e políticas. Contudo falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em abrir caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada que ver com os interesses brasileiros de longo prazo. E em política externa é disso que se trata.
Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar que se deva fazer o que foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem reconstruir a democracia no país, é ignorar os fatos. Os desatinos verbais têm sido de tal ordem que resta o consolo de ver os militares recordarem que temos uma tradição de altanaria e soberania a respeitar, soberania nossa e dos demais países.
Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente com sua tradição: ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na Venezuela, apoiar a oposição, dar acolhida às vítimas do arbítrio do atual governo e manter acesa a chama democrática. Abrir espaço para que terceiros países, mormente distantes da América do Sul, queiram resolver o drama político pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de atuação internacional.
*Sociólogo, foi presidente da República