Uma boa investigação é artigo de primeira necessidade. É ela, no final das contas, que vai desmontar crimes que pareciam perfeitos
Finalmente, uma luz no assassinato de Marielle Franco. Todos apostavam que não era um crime perfeito. Não era. Mesmo se fosse, todos aceitariam o desafio de desvendá-lo. No princípio, o foco era numa saída técnica e científica, como nesses programas de TV americana.
Era mais difícil por aí. As câmeras na região do crime foram desligadas um dia antes. Os carros não apareceram. As balas serviram para ajudar no exame de impressões digitais. Mas foram desviadas da PF, o que adensa o enigma. Restava, finalmente, a clássica pergunta: a quem interessa o crime? Começamos todos a desconfiar das milícias e da PM.
Marielle havia denunciado o batalhão de Acari. Mas não se mata tanto pela honra de um batalhão. O flanco das milícias estava mais a descoberto.
O GLOBO publicou uma série de reportagens sobre elas. No meio da matéria, um parágrafo meio perdido falava do projeto das milícias de verticalizar Rio das Pedras e Gardênia Azul. E mencionava um grupo de mulheres apoiado por Marielle que era contra essa pretensão.
Logo em seguida, morre assassinado um assessor de Marcello Siciliano, chamado Alexandre Cabeça. Queima de arquivo.
Andei pela Gardênia Azul documentando a onipresença de Siciliano. Há cartazes seus na praça, o espaço esportivo é apresentado como uma oferta do vereador à comunidade. Só outro nome aparecia nas faixas: Cristiano Girão, saudando os moradores da Gardênia Azul. Também ele foi acusado de dirigir milícias, até enquanto estava preso. Desde a morte de Alexandre Cabeça, cujo nome real é Carlos Alexandre Pereira, as atenções já se voltavam para a Gardênia Azul e Siciliano. Uma queima de arquivo nesse período era mais do que suspeita.
A aparição de uma testemunha contando como o crime foi planejado e executado acabou respondendo a quase todas as dúvidas. Inclusive, ela menciona outro crime, também uma queima de arquivo relacionada com o assassinato de Marielle.
Siciliano é acusado de tramar o crime com um chefe de milícias conhecido como Orlando Curicica, que, aliás, está preso há algum tempo. A tese do miliciano preso é de que a testemunha é um rival que quer liquidar com seu trabalho e, por isso, inventou seu acordo com Siciliano para matar Marielle.
Não sei que proveito a polícia tirou de tudo isso. Ela trabalha em sigilo. Mas seria interessante voltar ao velho esforço do princípio. A testemunha deu o nome dos dois homens que clonaram a placa do carro. Mais do que isso, deu os nomes de um PM e um ex-PM que estariam no carro dos assassinos. Imagino que essas quatro figuras já estejam presas, ou pelo menos sendo procuradas.
Assim como no caso do pedreiro Amarildo, alegro-me com a possibilidade de ver as coisas esclarecidas. Num programa de TV afirmei que, apesar da competência da polícia do Rio, a investigação criminal é o calcanhar de Aquiles de nossa política de segurança.
E uma boa investigação é um artigo de primeira necessidade, sobretudo num país em que há 60 mil assassinatos por ano. Assim como nos bons goleiros de futebol, a sorte é essencial, mas não é tudo.
O assassinato de Marielle e Anderson deu margem a inúmeras especulações políticas. É sempre assim. Mas o que interessa mesmo é saber o que aconteceu, punir os criminosos. O cinzento trabalho cotidiano de investigação não tem o charme dos grandes discursos. Mas é ele, no final das contas, que vai desmontar crimes que pareciam perfeitos.