Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos
‘O naufrágio das civilizações’. Quando esse livro chegou a mim, resolvi que ia lê-lo antes de outros que estão sobre a mesa. Interessam-me o título e o autor, Amin Maalouf.
Ele usa a imagem marítima, como a de grande barco afundando. Costumo usá-la como a perda do horizonte, uma outra forma de ver o naufrágio.
Maalouf começa se interrogando sobre o fracasso da modernização árabe, tão rica culturalmente na sua infância no Levante, um arquipélago de cidades comerciais, e na juventude em Beirute. Como foi que tudo se perdeu, que caminhos, que encruzilhadas transformaram o mundo árabe num lugar inseguro, desesperado a ponto de produzir legiões de suicidas?
Ele analisa o papel da grande figura de Nasser, sua vitória na luta anticolonial, mas constata que, de certa forma, Nasser jogou fora o bebê com a água de banho, perseguindo estrangeiros e limitando a liberdade de expressão. Sua trajetória se esgota na humilhante derrota da chamada Guerra dos Seis Dias, um desastre irreversível.
Maalouf avança para outros momentos da história e para outras regiões do mundo onde o naufrágio já aconteceu, como o Império Soviético, ou parece muito próximo, como o Ocidente.
Ele destaca uma data, 1979. E duas revoluções: a islâmica, no Irã, e a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra. A primeira pelo potencial de ódio que iria trazer para a tensão entre xiitas e sunitas. A segunda, pela consagração da ideia de que os interesses pessoais são o motor do progresso, que se realiza pela soma de todos eles, pela invisível mão do mercado.
O livro segue o rastro dessas duas revoluções para alertar para o perigo de naufrágio que nos ronda. Maalouf é consciente, como eu, de que as pessoas, no anoitecer da vida, tendem a olhar suas juventudes como uma época de ouro. E confundem o ocaso de seus mundos pessoais com o próprio fim do mundo.
Tudo isso me interessa muito, pois, nos últimos livros que escrevi, tentei entender as razões pelas quais o Brasil frustrou as expectativas grandiosas que tínhamos sobre ele. O título de um dos livros, inspirado em Marco Aurélio, exprime essa frustração: “Onde está tudo aquilo agora?”.
Todo esse trabalho antecede a eleição de Bolsonaro. Poderia voltar atrás, ao otimismo dos anos de Juscelino, à Bossa Nova, aos debates sobre os filmes de Glauber Rocha, aos romances de Guimarães Rosa, aos contos de Clarice Lispector.
Por economia, concentro-me em Bolsonaro. Algumas vezes, comparei seu projeto a uma tentativa de imitar Thatcher, inclusive num traço que Maalouf não mencionou nela: seu sonho de retorno da moral vitoriana.
No projeto brasileiro, Paulo Guedes representava o ultraliberalismo, hoje atropelado pela pandemia e pelo desejo de reeleição de seu chefe; Bolsonaro, por sua vez, desejava um retorno aos costumes mais antigos, algo que esbarra no Congresso e se realiza plenamente na política externa, campo em que o Brasil se tornou uma referência de fundamentalismo religioso.
Mas a grande afirmação de uma política baseada no egoísmo foi a defesa da economia a qualquer custo, independente do número de mortos que resultaria de uma política de imunização de rebanho, desejada por Bolsonaro.
Aumento de armas, supressão de medidas de segurança no trânsito. Tudo isso foi apenas o prenúncio de uma política ambiental destrutiva. A floresta em pé é mais difícil de defender. A supressão dos povos indígenas fundidos num só povo é também uma garantia contra a sedução estrangeira.
O resultado disso: morte e destruição que se estendem também às relações políticas no interior da democracia. De vez em quando, um “acabou, porra!”, uma vontade de encher a boca do outro com porrada.
A imagem do naufrágio no Brasil soa romântica como se estivéssemos no Titanic. Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos. A linguagem do poder é áspera e suja como nas salas de tortura.
No inferno de Dante havia pelo menos uma inscrição: deixai toda a esperança, vós que entrais.
Aqui nos empurram a pontapés e palavrões. Uma forte razão para desobedecer, manter a esperança.