Fernando Gabeira: O capitão e o navio

Bolsonaro sentiu que a guerra cultural seria um caminho não só para ampliar votos no Rio, mas para projetá-lo nacionalmente.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Bolsonaro sentiu que a guerra cultural seria um caminho não só para ampliar votos no Rio, mas para projetá-lo nacionalmente

Não é uma simples segunda-feira de primavera. Neste momento, já se sabe que Bolsonaro venceu o primeiro turno das eleições e mais ainda: como se compõe o novo Congresso.

As pesquisas me divertem. As projeções do segundo turno são exercícios fantásticos. Saber que a rejeição a Eymael caiu de 19 para 13 pontos coloca um enigma de interpretação: o que Eymael fez na semana para reduzir o saldo negativo? Na superfície, ele continua o mesmo Eymael, um democrata cristão: zero por cento.

Imagino que comece hoje uma discussão sobre as causas que levaram Bolsonaro a vencer o primeiro turno. E também a ampla distribuição de culpa entre seus adversários.

É uma discussão importante. Mas, se for isolada do resto, tende amostrar Bolsonaro como um alienígena que simplesmente aterrissou num país em crise.

Isso tende a omitir seu papel pessoal. Bolsonaro foi o deputado mais votado no Rio, em 2014. Ele teve 464 mil votos, cerca de 6% do total, um feito extraordinário em eleições proporcionais. Naquele momento, ele já estava em ascensão batendo, principalmente, em duas teclas: corrupção e segurança pública.

Sua proposta em segurança tem uma vantagem sobre todas as outras. Reconhece a limitação do Estado e envolve o indivíduo, que teria sua própria arma. Já a critiquei e propus uma outra forma de participação social: a informação, através dos novos recursos tecnológicos.

Concordamos num ponto em que os outros silenciaram: sema adesão da sociedade, fica difícil atenuar o problema da violência. Bolsonaro sentiu também que a guerra cultural seria um caminho não só para ampliar seus votos no Rio, mas para projetá-lo nacionalmente.

Percebeu também que não bastava brigar com Jean Wyllys para se popularizar. Ele encontrou um flanco: a educação sexual nas escolas. Bolsonaro sabe que a maioria das famílias quer ter a primazia de educar sexualmente os filhos.

Ao lançar cartilhas e distribuí-las sem o controle das famílias, a esquerda tornou-se vulnerável porque pareceu querer substituir a orientação familiar, em vez de negociar com ela.

Ainda vou escrever muito sobre Bolsonaro, inclusive sobre os 16 anos em que estivemos juntos em algumas comissões da Câmara, divergindo nos costumes e concordando na denúncia da corrupção.

A grande dificuldade com Bolsonaro é que, essencialmente, é anticomunista e tende a combater todas as lutas lideradas pela esquerda, como se tivessem sido inventadas por ela. Ele tem dificuldade em distinguir direitos humanos e exploração ideológica, movimento das mulheres das visões radicais, meio ambiente e ameaça à propriedade privada e, no caso amazônico, cobiça internacional.

Algumas de suas ideias sobre meio ambiente, sobretudo as de fundo nacionalista, são compartilhadas pelas Forças Armadas. Será, portanto, um tema que demanda muita sensibilidade para evitar que se reproduza aquela profunda divisão do tipo nós e eles, brasileiros e lacaios do imperialismo.

Em outras palavras, o estigma que a esquerda criou, na economia, para quem defende a abertura ao capital estrangeiro tende ase repetir, agora, na esfera ambiental nocam poda cooperação planetária. Só que as pancadas virão da direita.

Com todas essas divergências, creio que será possível estabelecer um diálogo. Pessoalmente, sempre conversei com Bolsonaro ao longo de 16 anos.

Nos seus primeiros discursos na Câmara, ele pedia minha prisão porque eu era um sequestrador do embaixador americano. Ele queria reproduzir o debate sobre a luta armada. Os tempos eram outros, tínhamos um novo país para construir.

A esquerda me considera um traidor que ocupa um espaço na lata de lixo da história. Sou aquele jogador que já foi do time e a torcida vaia sempre que toca na bola.

Mas esquerda e direita são forças missionárias que tentam universalizar seu conceito de boa vida. Numa sociedade complexa como a nossa, precisamos reconhecer as diferenças e navegar com cuidado, administrando os problemas recorrentes.

A ideia de um país dominado pela Bíblia ou pelo “Capital” de Marx não deixa de ser legítima. Apesar da importância que ambos dão aos seus textos, eles são apenas um modesto guia. O mundo ultrapassa os velhos esquemas mentais. Ou, em linguagem bem brasileira: o buraco é mais embaixo.

Privacy Preference Center