A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade
Ironicamente, um governo machista que cultua armas pode descrever seu maior abalo com um poético símbolo fálico: um pênis do tamanho de um cometa. Foi assim que Fabrício Queiroz descrevia o futuro que esperava o grupo em torno de Bolsonaro.
Ironicamente, Fabrício se escondeu no sítio de um amigo em Atibaia. E a operação que o encontrou foi denominada Operação Anjo, em homenagem ao advogado da família Bolsonaro, acusado, no passado, de bruxaria.
O Brasil é um desafio para os romancistas. A tempestade perfeita acabou se abatendo sobre Bolsonaro: inquéritos sobre fake news e manifestações ilegais, militantes presos, deputados com sigilo bancário quebrado.
E, finalmente, a prisão de Queiroz. Não era o homem mais procurado do país. Mas era o mais solicitado. De todos os cantos brotava a pergunta: onde está Queiroz? Queiroz estava escondido na casa do advogado da família Bolsonaro. Para uma operação no nível de segredo de Estado, é de um amadorismo comovente.
A exposição dessas operações suspeitas de Bolsonaro talvez o enfraqueça nas Forças Armadas, bicho-papão com que ele nos ameaça a cada momento. Os militares têm aceitado tudo. Desde os ataques à República até a necropolítica de Bolsonaro na pandemia de coronavírus. Nos ataques à Proclamação da República pelo menos ficaram calados, não os endossaram. Mas a política de Bolsonaro é executada por um general da ativa que quer nos entupir de cloroquina porque seu líder assim o determinou.
A sorte é que nem sempre acertará no alvo. Confunde hemisférios e coloca o Nordeste acima da linha do Equador, e chama Rio Branco de estado. Sua imprecisa pontaria geográfica talvez nos ajude a sobreviver.
Também entre os que esperavam um combate à corrupção, Bolsonaro vai se enfraquecer. Aliás já estava se enfraquecendo com a queda do Moro. Caiu nos braços do centrão e agora vem à tona o esquema de Queiroz e seus milicianos.
Não creio, entretanto, que a situação ficou menos tensa. Ao contrário. Quem se sente encurralado tem mais chances de buscar ações desesperadas.
Antes da queda de Queiroz, comecei a escrever um artigo partindo de uma frase de Skakespeare em Hamlet: “Ai ai de mim por ver o que vejo.”
Era um artigo para lembrar que falhamos na pandemia, apesar do tempo de preparação. Perdemos mais gente, empregos e tempo por causa de nossa incapacidade nacional.
Estamos às vésperas de um novo desafio: uma profunda crise econômica e social. Onde Paulo Guedes vê um futuro brilhante, vejo suor e lágrimas, mais suor do que lágrimas, adaptando a famosa frase de Churchill aos trópicos.
A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade e construção da mínima rede social num país que se dissolve.
Costumo dar como exemplo Paraisópolis. Imagino que sejam contra Bolsonaro, pois estive lá e vi como sofreram com a violência policial. Agora na crise, conseguiram uma ambulância, médicos, lugares para isolamento, criaram um sistema defensivo. Eles sabem que são tarefas do Estado, mas não podem esperar.
Uso esse pequeno exemplo para mostrar que em escala nacional não basta a grande batalha para derrotar o projeto autoritário de Bolsonaro. É uma luta que tomará tempo e, enquanto isso, o país continuará sangrando.
Tenho andado pouco pelas ruas. Mas percebo um número maior de gente em dificuldade. Conheço muitos moradores de rua do meu bairro. Alguns documento com fotos ao longo dos anos.
Nas poucas saídas, percebi que mudou a população de rua. Procuro alguns que conhecia e suspeito que morreram. Ao mesmo tempo, surgiram muitos novos, famílias inteiras.
A pandemia ainda nem acabou, e estamos diante de uma situação em que não podemos perder de novo. A imagem no exterior se evaporou. Nosso soft power — cultura, simpatia, natureza — foi para o espaço. O Brasil se isolou.
Mas ainda não desapareceu. Dai a histórica dimensão da tarefa. O único consolo é acreditar que a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.