Quando não for possível UTI, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como um peixe fora da água
Durante três semanas critiquei essa ideia de manifestação no domingo. Tanto o governo como a oposição pareciam para fora do mundo. Era contraditória a posição de Bolsonaro. Num dia, afirmava que o Brasil deveria seguir os especialistas no enfrentamento ao coronavírus; no outro, convocava manifestação de massas em todo o país. Ontem, ignorou o risco e cumprimentou manifestantes.
Houve quem protestasse: afinal, o povo tem direito de se manifestar nas ruas. Não era isto que estava em jogo, mas a saúde dos bolsonaristas e também dos opositores, uma vez que o vírus não tem ideologia.
Não faz sentido para mim usar este tipo de argumento “bem que avisei”. O Brasil tem um delay na absorção de algumas realidades evidentes no resto do mundo. Sabendo disso, é preciso sempre falar com calma, pois não vai ser o seu argumento que mudará as coisas. É algo que se resolve no curso dos fatos reais.
Não há que olhar para trás, criticar de novo. Bolsonaro nos EUA, depois de um jantar com Trump, disse que o coronavírus estava sendo ampliado pela mídia. Exatamente o que Trump costumava dizer.
Será preciso esquecê-los, se isso for possível, para pensar na estratégia real de combate ao vírus. Pelo que li sobre a Itália e a China, é evidente que precisamos preparar leitos e UTIs. Quando não for possível uma unidade intensiva, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como peixe fora da água.
Teremos de reduzir drasticamente nossos contatos físicos. Isso não é fácil. Uma campanha na Suécia, na década dos 80, me chamou a atenção: toquem uns nos outros, isso faz bem.
Os suecos tinham quase nenhum contato físico com estranhos. Ao contrário de nós, latinos. Essa diferença cultural às vezes constrangia, pois um simples toque, o braço envolvendo o ombro, tudo isso era sentido como invasão da privacidade.
Hoje, o que era nossa qualidade, desde que exercida com discrição, o contato físico passa a ser um problema para nós. Quase meio século depois, estou diante de uma campanha importante, exatamente oposta da sueca: não se toquem.
A loja de departamentos que fez a inscrição nas sacolas acrescentava uma conclusão: isso é importante para a saúde. Concordo com o autor da frase. É importante o toque físico para a saúde mental. Assim como é dispensável a figura pegajosa que não conhece limites.
Pelos lugares em que ando as pessoas ainda estão se cumprimentando normalmente, sobretudo no interior. Talvez por ter surgido na China superpovoada e crescido em grandes cidades, muitos pensam que é uma doença dos grandes centros.
Cedo ou tarde, entretanto, todos estarão cumprindo as orientações da OMS. Será difícil também se houver maior incidência em alguns lugares. O ministro da Saúde prevê isto para o Rio. Muitas cidades, às vezes uma província, ou mesmo um país inteiro, como a Itália, tiveram que ser isolados.
Seremos forçados e nos adaptar a uma nova e dura realidade. Alguns pensadores acham que o mundo mudará depois do coronavírus.
No momento, acho apenas que isto é o desejo deles, não vejo ainda as evidências de mudanças permanentes. Se aqui no Brasil começarmos a lavar as mãos com mais frequência, já se terá dado um passo importante em nossa vida.
Outras decisões pessoais importantes podem surgir daí. Se o corona atinge basicamente o pulmão, por que enfraquecê-lo com qualquer tipo de cigarro?
Se podemos percorrer um trecho determinado por terra, com pouca gente, por que fazê-lo de avião? É mais rápido e confortável, no entanto, mais perigoso porque no avião possivelmente circulem mais bactérias e vírus.
Nem todas as mudanças podem ser duradouras. Sobretudo as que são determinadas de cima para baixo. Os chineses estão proibidos de comercializar animais selvagens nos mercados. Mas será que essa lei vai pegar?
O Brasil enfrenta essa batalha num momento muito difícil. Polarização política, agressividade, falta de lideranças nacionais que se interessem pelo tema coronavírus, indiferentes ao que acontece no mundo.
Não escolhemos o momento, nem escolhemos o vírus. Quando surgiu a Aids, observei as mesmas dificuldades. E, no entanto, era uma batalha muito mais perigosa e letal, que acabou sendo vencida pelo Brasil.