Fernando Exman / Valor Econômico
O presidente Jair Bolsonaro terminou o ano passado, começou 2022 e avança sobre o mês de janeiro sem definir quem ocupará, no Senado, uma função estratégica. A liderança do governo está vaga e, até agora, não há sinal vindo do Palácio do Planalto sobre uma definição. O mais grave problema do Executivo em relação a este tema, contudo, não é quando o seu novo representante chegará para o primeiro dia de trabalho. É como isso ocorrerá.
O Senado vem se mostrando uma Casa mais hostil ao governo do que a Câmara. Hospedou a CPI da Covid, atrapalhou planos da equipe econômica, como a reforma tributária, e nos últimos meses tornou-se área de atuação de outros três pré-candidatos à Presidência. É um terreno que merece atenção especial dos articuladores políticos do governo.
Bolsonaro ficou sem líder na última quinzena do ano, sempre um período de pauta cheia, mas pelo menos agora os trabalhos no Legislativo estão praticamente paralisados devido ao recesso parlamentar. Além disso, na ausência do titular, os vice-líderes podem executar alguma missão eventual, mesmo que sem a mesma autoridade.
Porém, do ponto de vista de quem terá pouco tempo para trabalhar antes que toda a atenção dos senadores se volte para a campanha eleitoral, seria bom contar com alguém adiantando as amarrações necessárias para acelerar a tramitação dos projetos mais urgentes e barrar eventuais pautas-bomba.
Um debate está dado. A pressão dos servidores públicos por aumentos salariais é crescente, e não há espaço no Orçamento para agradar a todas as categorias – algumas da elite do funcionalismo e outras integrantes da base eleitoral de Bolsonaro, todas insatisfeitas.
É possível listar, também, uma série de vetos presidenciais à espera da apreciação dos parlamentares. Os grupos de pressão que trabalham para derrubá-los não tiraram férias, como nos casos dos vetos feitos a trechos do novo marco legal da cabotagem e do Refis das empresas de pequeno porte e do Simples. Caso artigos do Orçamento também sejam barrados pelo Executivo, uma vez que o prazo de sanção termina nesta semana, dificilmente o governo terá sucesso no esforço de fazer sua vontade prevalecer sem um time de líderes completo, alinhado e com credibilidade para negociar.
Interessados na vaga sempre aparecem. Ainda mais diante de um cenário em que Bolsonaro não aceitará nenhuma indicação de partidos políticos para os ministérios, quando os titulares das pastas se desincompatibilizarem para disputar as eleições. A liderança do governo é, sim, um posto que dá prestígio. Ela garante acesso privilegiado aos gabinetes mais influentes da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, além de propiciar maior poder nas discussões que definem a destinação dos recursos das emendas ao Orçamento. Ativo valioso.
Mas, na visão de alguns dos interlocutores do futuro indicado, ou seja, outras lideranças partidárias, o primeiro desafio será convencer a todos que os acordos fechados serão cumpridos à risca e terão respaldo do Palácio do Planalto. Isso será determinante para melhorar – ou não – o ambiente dentro e fora da base.
O histórico do presidente, contudo, não ajuda. “A relação de Bolsonaro com seus líderes é de contratado. Ele dá zero consideração”, diz um senador influente da oposição. “Não estou dizendo que as pessoas são mercenárias. Estou dizendo que o tratamento é como se fossem mercenários que ele contrata. É assim que ele os trata. Não estou falando dos colegas, mas da cultura do Bolsonaro.”
Essa fonte lembra ainda que, em sua tradição de negar a política, o presidente nunca construiu relações baseadas em projetos comuns ou compromissos históricos. E com frequência abandonou os que antes o ajudaram.
Mas, então o que seria essa cultura? E quais os riscos de adotá-la na prática política?
O livro “Uma história da guerra”, de John Keegan, é leitura útil. Além da figura do mercenário, explica o autor, há várias outras formas de engajamento numa organização militar, voluntária ou forçada. No caso dos mercenários, existe uma relação comercial por meio da qual determinado indivíduo vende um serviço militar – não só em troca de dinheiro, mas também de incentivos como doações de terras, concessão de cidadania ou tratamento preferencial.
Um elemento central do contrato entre o soberano e suas forças regulares é que elas sejam alimentadas, abrigadas e pagas tanto na guerra quanto na paz. Por isso, há diversos exemplos históricos de mandatários que acabam caindo na tentação de adquirir serviços militares apenas quando estes se fazem necessários. Em outros casos, Estados suplementam suas forças contratando mercenários, muitas vezes por longos prazos e com resultados satisfatórios para ambas as partes. Essa é a base do sistema mercenário.
Por outro lado, quando se tenta reduzir o tamanho das forças ou dos benefícios entregues, há risco de motim.
E o texto vai além: “O perigo inerente à utilização de mercenários é que os fundos necessários para sustentá-los podem acabar antes que o contrato chegue ao final estipulado, ou que a guerra dure mais que o esperado, com o mesmo resultado, ou ainda, se um Estado foi tão miserável, complacente ou apático a ponto de depender exclusivamente deles, que os mercenários venham a perceber que constituem o poder efetivo”, escreve Keegan. “Nessas circunstâncias, são antes a seus empregadores que aos inimigos que os mercenários representam uma ameaça: eles tomam partido em disputas internas, fazem greve ou chantagem para receber o que lhes é devido ou por pagamentos extras, podem até passar para o lado do inimigo. Na pior das hipóteses, tomam o poder.”
Bolsonaro não é o primeiro presidente com essa mentalidade. Talvez, pelo seu histórico militar, apenas aja com mais naturalidade. Ainda pode enfrentar as consequências de manter relações desse tipo.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/uma-historia-sobre-a-guerra-no-senado.ghtml