Há risco de banalização do choque entre Poderes
Um país polarizado é o habitat perfeito para um governante que considera todo assunto que chega aos escaninhos do Palácio do Planalto um risco ao seu mandato ou um lance de disputa de poder.
Esse hoje é o retrato do Brasil, onde o presidente da República tem em sua base eleitoral quem ainda discute o formato da Terra, ignora o aquecimento global e, agora, faz pouco caso de uma pandemia que avança no Brasil em progressão geométrica. Um país em que os demais Poderes republicanos tentam continuar trabalhando em harmonia, enquanto se esforçam para evitar que um eventual grito de independência seja interpretado como um grito de guerra.
Consolida-se, assim, um ambiente árido para que autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário tentem construir saídas para uma crise ainda sem um ponto final perceptível no horizonte. É real o risco de banalização dos choques entre as instituições.
Ironicamente, a tíbia articulação política do governo, até recentemente sob severas críticas dos parlamentares, terá uma trégua.
Todos os sinais vindos do Congresso apontam que os deputados e os senadores não criarão obstáculos à aprovação de medidas emergenciais para o enfrentamento dos efeitos da crise. O Legislativo está decidido a mostrar para a sociedade que não deixará de trabalhar, mesmo em meio aos ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados.
É por isso que tanto o Congresso quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) fazem questão de permanecer com as portas abertas. O Palácio do Planalto também está.
No entanto, a despeito do clima de disputa política que vem do gabinete presidencial, o ministro da Saúde já comprovou sua capacidade de interlocução direta com o Parlamento. A habilidade pode ser crucial.
Antes de assumir o Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta foi deputado federal por dois mandatos e é filiado ao DEM. O mesmo partido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (RJ), e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP).
Em relação ao presidente do Senado, inclusive, o ministro da Saúde manteve grande proximidade quando eles estavam na Câmara. Ambos faziam parte de um grupo pequeno de deputados do DEM, que, por serem representantes únicos de seus Estados, precisavam somar votos para ter força nas reuniões internas da bancada do partido.
Ademais, o desempenho de Mandetta tem sido bem avaliado pela cúpula do Congresso, com quem tem um bom diálogo. A sinalização que tem recebido de seus antigos colegas é de que não haverá restrição de recursos para sua pasta durante essa situação de emergência nacional.
No ano passado, o ministro foi ao Congresso com a missão de desmobilizar uma obstrução e aprovar a criação do Médicos pelo Brasil. O programa foi aprovado pouco antes de caducar a medida provisória que o instituiu e a obstrução, retomada. Projetos de interesse de outros ministérios não tiveram o mesmo destino.
Como as medidas anunciadas pelo governo não são apenas voltadas à área da saúde, seria prudente que o Executivo trabalhasse para evitar que suas relações com o Congresso continuem se deteriorando. Isso ainda é possível, apesar da disputa pelo controle do Orçamento e o recente estranhamento entre a equipe econômica e a cúpula do Congresso.
Nos últimos dias, congressistas se queixaram que o ofício com 19 propostas do Ministério da Economia para combater os efeitos da crise foi protocolado no Parlamento sem aviso prévio.
Quando o ministro e seus auxiliares se dirigiram na semana passada ao Parlamento, líderes partidários ficaram atônitos com a falta de pelo menos um rascunho, um menu básico com medidas anticrise à disposição do ministro da Economia, Paulo Guedes. Afinal, diversas autoridades estrangeiras já tratavam o avanço do coronavírus com a seriedade necessária e desfilavam com um arsenal diversificado de ações.
Entre a reunião de emergência e o anúncio do primeiro conjunto de iniciativas do governo, também não houve a articulação esperada pela cúpula do Congresso. O humor dos parlamentares piorou.
Para deputados e senadores, o que veio do Executivo até agora é apenas um alento, uma etapa inicial de um processo que consumirá pelo menos três meses. Justamente o que resta deste semestre, até que vigore o recesso parlamentar e as campanhas eleitorais dominem o calendário.
Pressionados pelos governadores e prefeitos, os congressistas continuam pedindo uma maior proatividade da equipe econômica. Demandam uma injeção de recursos na economia, mesmo que isso represente um maior endividamento do setor público. Sabem que Bolsonaro tem um instinto político privilegiado, mas não querem correr o risco de também serem acusados de omissão.
Antes de a crise provocada pelo coronavírus se agravar, integrantes do Centrão haviam captado sinais de deterioração da popularidade do presidente da República. Até então, esses sinais decorriam da frustração em relação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Mas os efeitos negativos adicionais da pandemia na economia são mais evidentes a cada dia que passa.
Será no sistema de saúde, contudo, que eles ganharão contornos dramáticos – caso as medidas de contenção do vírus preconizadas pelos técnicos continuem sendo desprezadas.
Em dezembro do ano passado, uma pesquisa do Datafolha mostrou que a área da saúde era apontada espontaneamente por 19% dos entrevistados como a mais problemática do país. A saúde sempre foi um desafio para os governantes, mas, antes de Bolsonaro assumir, um levantamento realizado pelo mesmo instituto um ano antes mostrava a saúde com 22% das citações.
Os números que virão durante e depois da crise ainda são uma incógnita. Mesmo assim, é possível apostar que eles pautarão o comportamento do presidente e em que tom se dará sua interação com os demais Poderes.