Governo deveria viabilizar produção local do imunizante
Quarta-feira de Cinzas, dia em que as ilusões de Carnaval se tornam menos turvas, a realidade se impõe, nada mais serve de desculpa para adiar novamente a execução do que foi planejado ou ignorado. Ilusões de Carnaval em tempos de pandemia têm lá suas particularidades.
Em Brasília, o devaneio foi do governo local. Acreditou que conseguiria inventar por meio de decreto uma nova modalidade de folia, o Carnaval sentado. Bares e restaurantes foram autorizados a funcionar, desde que não houvesse passistas nos salões ou nas ruas. Impossível controlar. Os próximos balanços do Ministério da Saúde dirão se a estratégia funcionou ou foi apenas para autoridade sanitária ver.
O governo Bolsonaro também vai criando suas histórias de Carnaval. No primeiro ano, a data ficou marcada pelas publicações escatológicas do presidente. Este deve passar a ser conhecido por aquele em que apenas o Centrão e os armamentistas tiveram motivos para jogar confete.
Depois de muito resistir e criticar quem o fez, Bolsonaro acabou cedendo o Ministério da Cidadania a partidos aliados. Outras mudanças no primeiro escalão devem ocorrer durante a Quaresma – para quem crê na Bíblia, um período de penitência e reorientação.
Bolsonaro descumpriu o compromisso feito durante a campanha de manter-se afastado das práticas tradicionais da política, mas, em contrapartida, na sexta-feira editou uma nova leva de decretos para flexibilizar o acesso a armas e munições. Era uma promessa antiga, adiada há tempos. Já havia, inclusive, virado motivo de deboche entre seus apoiadores em razão da demora e de sucessivos adiamentos.
O governo esperou a nova cúpula do Congresso tomar posse e se estabelecer no comando da Câmara e do Senado. Agora é menor o risco de aprovação de um decreto legislativo que suste esses atos normativos do Executivo, tanto que a oposição já decidiu judicializar. Mesmo assim, será interessante ver como o governo vai se equilibrar entre dois de seus pilares de sustentação: a bancada da segurança pública e a bancada evangélica.
Contudo, provavelmente a vacina seja a maior ilusão do brasileiro nesta Quarta-Feira de Cinzas. Estados e municípios registram problemas no fluxo de imunização da população. Crescem as reclamações dos entes federativos quanto aos critérios de divisão das doses e à demora no envio das próximas levas. Governadores que fazem oposição ao governo indagam se haveria algum tipo de desprestígio proposital em relação às suas administrações.
Tem sido lenta, também, a mobilização do setor público no sentido de construir as condições necessárias para o desenvolvimento e a produção em massa de vacinas nacionais.
O registro de novas cepas do coronavírus comprova a necessidade de o Brasil ter como garantir, a longo prazo, uma autonomia nesta frente de batalha contra a covid-19. Isso envolve a estruturação de uma cadeia que assegure o desenvolvimento e a capacidade de produção em massa de imunizantes, testes para a detecção de novas variantes, assim como pressuponha a autossuficiência no abastecimento de insumos farmacológicos ativos (IFAs), substâncias que só ganharam notoriedade do público em geral depois que começaram a faltar.
Não por culpa do setor privado, é ainda tímida a interação entre a indústria e o governo. A indústria farmacêutica depende da inovação, se não quiser vender apenas produtos existes e acabar caindo numa guerra de preços cujo resultado óbvio seria manter no jogo apenas quem tiver muita escala.
O Estado, por sua vez, deve adotar práticas regulatórias mais amigáveis e exercer seu poder de compra – inclusive dividindo os riscos, para que a iniciativa privada consiga avançar no sentido de dominar as tecnologias e processos fundamentais para o cumprimento desta missão. Por isso são tão bem-vindos instrumentos como o da encomenda tecnológica, corretamente utilizada nesta primeira fase do combate à covid-19.
Reginaldo Arcuri, presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, associação da indústria farmacêutica de capital nacional e de pesquisa, conta que a entidade tem mantido contato com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, BNDES e Ministério da Economia. A ideia é mapear o que é necessário fazer para que se tenha uma vacina brasileira.
O que é preciso para enfrentar esse desafio com sucesso? Arcuri responde: “Clareza do governo do que ele quer. Segundo, coordenação dos órgãos de governo. Não pode começar o processo e lá na frente a Receita Federal ou a Advocacia-Geral da União (AGU) dizer que não pode… Em terceiro, dinheiro. Tem que ter dinheiro. Mas, não é dinheiro para jogar para o alto e ver quem pega”.
Ele cita como exemplo a análise do custo de uma etapa pré-clínica. Nesta fase, argumenta, as empresas devem dizer quanto estão dispostas a desembolsar, mas o governo também precisaria fazê-lo. “Isso é compartilhamento de risco. Está na legislação brasileira e pode ser feito. Não há problema nenhum. E a fundo perdido, não é empréstimo.”
Previsibilidade e segurança jurídica entram na equação. “Tudo leva tempo”, acrescenta o presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, segundo quem a indústria nacional demoraria entre um e dois anos para produzir um imunizante local, se todas as condições ideais forem construídas. “Correr risco com dinheiro público não é dar dinheiro para bandido.”
Informações oficiais do governo apontam que algumas vacinas nacionais já estariam em fase de desenvolvimento, inclusive com testes em animais e com a possibilidade de começarem logo a testagem em seres humanos. A velocidade que isso vai se desenrolar ainda é uma incógnita.
Talvez o Carnaval do ano que vem seja marcado por marchinhas e sambas-enredo críticos à atuação do governo. Os foliões não costumam perdoar. Nem mesmo o médico sanitarista Oswaldo Cruz escapou das ironias na época da Revolta da Vacina, mesmo estando do lado certo da história.