Fernando Abrucio: Existe um Brasil para além de Bolsonaro

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários – é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

É interessante notar que mesmo naquilo que o bolsonarismo procura trazer de agenda positiva, isto é, de defesa de uma visão comum de país, ele o faz criticando outros ou reprimindo comportamentos ou ideias que deveriam ser extirpados. Para ficar nas simbologias religiosas, trata-se de um modo menos franciscano de pensar a política e mais baseado numa concepção cruzadista – conquistar corações significa usar a guerra como instrumento.

Bolsonaro é muito parecido com Lula em sua grande capacidade de falar a linguagem popular e de fazer campanha eleitoral permanente. Porém, ao construir seu discurso com tonalidade negativa e centrado na busca de inimigos, ele constrói um tipo de liderança cuja força está em captar o medo e a raiva das pessoas. Foi esse o espírito predominante nas eleições de 2018, depois de anos de recessão e da avalanche contra a corrupção produzida pela Lava-Jato. Ainda há muita gente ligada a esses dois sentimentos, mas em algum momento muitos desses eleitores vão querer de volta a esperança.

Se o presidente conseguir um bom resultado econômico e social até 2022, algo realmente robusto, pode estar aí uma novidade em relação ao seu padrão atual, sustentado na negatividade. Caso contrário, terá que se basear num modelo em que ele briga contra todos, torcendo principalmente para ter alguma polarização com o PT. Só que antes de pensar nas próximas eleições presidenciais, é preciso lembrar a longa travessia, de mais três anos, que teremos de enfrentar.

Há duas grandes variáveis que podem, em algum momento, inverter o clima construído pela liderança presidencial de Bolsonaro. A primeira é de cunho estratégico e a segunda capta as profundezas de um país que parece ter ficado para escanteio na agenda política. Afinal, o clima azedo do bolsonarismo disseminou-se e muitos se perguntam se há algum lugar em que isso não seja dominante hoje no Brasil.

Ao ter de criar a todo momento fatos políticos baseados no confronto, Bolsonaro abre muitas arestas e possibilidades de problemas, inclusive porque atua desse modo também no plano internacional.

Esse conjunto de inimigos e disputas vai se acumular durante quatro anos, e caso a bonança não venha logo, a tendência é que o número de adversários e eleitores insatisfeitos vai crescer mais do que o contingente de criticados (pessoas, ideias e grupos sociais) pelo presidente.

Exemplo maior disto é a postura ambiental do país, criticada recentemente pela Comissão Europeia, que disse abominar as atuais ações do governo Bolsonaro. O mais provável, conhecendo seu estilo, é que o bolsonarismo vai continuar nesta toada até que a crise vire algo muito grande. Assim, não deverá ser aprovado o acordo União Europeia/Mercosul neste quadriênio, o agrobusiness brasileiro pode perder mercados, megainvestidores institucionais reduzirão seu ímpeto e não adianta xingar a “pirralha” da Greta. No meio desse caminho, o governo pode perder apoiadores, deixando o capitão apenas com seu séquito mais fervoroso, cujo tamanho é pequeno demais para garantir a governabilidade.

Muitas outras áreas dominadas pelo discurso bolsonarista do confronto podem ter esse mesmo desfecho, como na política externa ou na educação. Portanto, talvez seja muito difícil para Bolsonaro manter esse estilo durante toda a travessia sem ter arranhões muito grandes. Mas, além disso, é preciso lembrar (quase gritar) que existe um Brasil para além de Bolsonaro. Um país que, a despeito desse caldo de cultura marcado pelo confronto permanente, está tendo sucesso em suas ações adotando outra forma de agir coletivamente.

Uma parte importante desse outro país está com políticas públicas bem-sucedidas no plano subnacional. O bolsonarismo criou o slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, mas poucas vezes olha com a devida atenção para o que ocorre em vários entes da Federação. Em vez do ministro da Educação ficar xingando tudo que ocorreu antes dele por conta dos resultados dos alunos brasileiros no exame internacional do PISA, ele deveria conhecer e disseminar o que tem dado certo em termos de políticas educacionais estaduais e municipais.

Weintraub deveria parar de criar factoides e começar a conhecer a experiência de Sobral e, numa escala maior, do Ceará, para ver como é possível fazer uma revolução no processo de alfabetização. Existe ali um Brasil que dá muito certo e não segue a lógica bolsonarista. Ao contrário, o forte do modelo cearense é a montagem de uma governança baseada na confiança mútua e colaboração entre os mais diversos atores, inclusive de vários partidos políticos. Deveria, ainda, conhecer a experiência dos Arranjos do Desenvolvimento da Educação (ADEs), que juntam municípios num processo cooperativo para resolver problemas educacionais, seja na Chapada Diamantina, em Votuporanga (SP) ou na Grande Florianópolis. Mais uma vez, a solução aqui foi um arranjo que reúne pessoas e movimentos os mais variados, em vez de procurar inimigos em todo canto.

A cultura é um dos grandes patrimônios de qualquer país. No caso brasileiro, isso é ainda mais marcante porque somos reconhecidos internacionalmente pelas nossas obras culturais e artistas. Pois bem, e o que faz o governo Bolsonaro? Coloca em xeque a riqueza cultural e nossa diversidade em nome de um projeto de purificação de nossa arte. Onde isto deu certo? No Irã de Khomeini? Na Coréia do Norte?

Fernanda Montenegro e Chico Buarque são símbolos nacionais e internacionais de um Brasil que dá certo. Eles não precisam de Bolsonaro, mas o Brasil precisa de gente como eles. E se a nova orientação oficial é procurar a “verdadeira cultura popular brasileira”, é preciso conversar com os jovens da periferia das grandes cidades, que produziram cultura como forma de combater a desigualdade e dar visibilidade a quem não tem espaço no grande “show business”. Mas o bolsonarismo não vai dialogar com esse pessoal, nem com os seguidores de Ariano Suassuna.

Existe uma sociedade civil pujante no Brasil, com projetos coletivos em várias áreas, que melhoram a qualidade das relações sociais em vários lugares, sobretudo nos mais carentes. Há muitas parcerias entre universidades e destas com empresas produzindo inovação e desenvolvimento de longo prazo para o país, usando como principal instrumento a busca de sinergias. Também há empresas e empreendedores que obtiveram sucesso internacional porque acreditam que boas ideias e muito trabalho são mais importantes do que ficar brigando nas redes sociais.

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além dessa lógica de guerra. Um país que deveria ter orgulho de Paulo Freire, porque as melhores universidades americanas o consideram um dos maiores educadores do século XX, e a Finlândia, aquele país sempre elogiado no PISA, usa claramente o seu método educativo para formar os jovens que vão compor sua sociedade do futuro.

Desejo a todos um excelente 2020, que deixe para trás a lógica do confronto permanente instalada por Bolsonaro. Temos um país em que há ainda muitos problemas e feridas, como a escravidão, mas cuja saída está em mais colaboração entre Estado e sociedade, bem como maior tolerância e negociação entre lideranças políticas diferentes.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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