Brasil transita em direção a uma cultura da violência
O senador americano Joseph McCarthy (1908-1957), republicano, virou o ícone da sanha anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos entre os anos 40 e 50. A ordem democrática não foi oficialmente quebrada, mas quase.
O “macarthismo” foi uma santa inquisição sem batina, perseguindo fanaticamente escritores, roteiristas, atores e jornalistas, sem prova. Queimou reputações e estripou a honra de suas vítimas, numa campanha trágica e ridícula, de uma só vez. Não tinha justificativa, mas tinha um contexto: a Guerra Fria.
O planeta se dividira entre comunismo e capitalismo. O Tio Sam temia que a União Soviética infiltrasse na “América” seus agentes malignos disfarçados de pessoas aparentemente “normais”, como na série de televisão “Os Invasores”. Era preciso incinerá-los. O cidadão pacato podia ser o inimigo “disfarçado”.
Na ditadura militar brasileira, os governantes, convencidos de que a política era a continuação da guerra, destroçaram famílias, vidas e esperanças sob o pretexto imundo de combater o “inimigo interno”, que estaria a serviço do “inimigo externo”. O resultado foi uma farsa grotesca e sanguinária que, além de não ter justificativa, não tinha nem contexto.
Agora, com a vitória de Jair Bolsonaro, ganha estridência no Brasil uma fúria anticomunista de cunho patrioteiro, religioso, moralista –e anacrônico. Seus agentes gritam em defesa dos costumes da “família”. Não admitem que adolescentes vejam beijos homoafetivos em livros ou na televisão, embora declarem não ter “nada contra” a “opção” (outro sem sentido) homossexual. Invocam o nome de Deus como cruzados. Consideram imorais as novelas da Globo.
Em seu credo, toda a corrupção é culpa da esquerda, e a direita representa toda a honestidade humana. Entre uma coisa e outra, essas falanges insultam a imprensa de todas as maneiras. Intimidam jornalistas e achincalham gratuitamente órgãos de imprensa.
O Brasil não está em transe, mas transita. Transita de uma cultura política que cultivava aspirações de pluralismo, liberdade e diversidade, com base nos valores dos direitos humanos, em direção a uma cultura da violência (“mirar na cabecinha”, “direitos humanos para humanos direitos”), do nacionalismo furibundo de disciplina impositiva.
A prepotência já pôs duas de suas quatro patas na rampa do Palácio do Planalto. As outras duas logo virão: repressão aberta aos movimentos sociais, pregações contra a liberdade de cátedra nas universidades (e contra a gratuidade do ensino), ações deliberadas para ferir ou matar jornais independentes do governo.
Quando o presidente eleito prometeu cortar verbas do governo para esta Folha — a primeira vez ainda antes da eleição, no comício de 21 de outubro, e a segunda vez, no dia seguinte à sua vitória, durante a entrevista que deu ao Jornal Nacional, no dia 29 –, foi coerente com seu projeto obscurantista.
Ele há de saber que não pode adotar um critério pessoal para orientar compras públicas (e a compra de espaço publicitário para veicular mensagens do governo é uma compra pública como qualquer outra, obrigada a observar o princípio constitucional da impessoalidade). Ele sabe e tem o dever de saber que o Estado não é uma extensão da personalidade do presidente. Tem o dever de saber que, se cumprir sua promessa de perseguir a Folha, afrontará o Estado de Direito.
No mais, o macarthismo nunca teve caráter. Fora de tempo e de lugar, tem menos ainda. A imprensa precisa resistir. Com reportagens apartidárias, crítica franca e profundidade analítica, terá de mostrar que o novo delírio autoritário que cresce no Brasil se situa perigosamente fora da razão e fora do campo democrático.
*Eugênio Bucci é professor da ECA-USP e articulista do jornal O Estado de S. Paulo