Na nossa mitologia meio mequetrefe, meio rastaquera, o candidato que lidera as pesquisas, posto para fora do pleito por força da legalidade eleitora receberá votos mesmo assim
“O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo” Sigmund Freud, em Totem e Tabu
Imaginemos a condenação de um adorado líder nacional que sofreu um processo administrado com celeridade atípica, a toque de caixa. Imaginemos que esse homem forje uma oportunidade espetacular para discursar em público, momentos antes de se entregar aos que farão cumprir a sentença. De posse da palavra, diz que seu crime não está no mal que causou, pois não causou nenhum. Sua eloquência comove os presentes. Se sofrerá punição, assegura, só a sofrerá por ter feito o bem ao povo. Ele se vê como um revolucionário. Está seguro de que a História reconhecerá seu valor. Acusa os juízes de estarem a serviço de ordens espúrias e inconfessáveis. Adverte que a imprensa deixou de cumprir o seu papel de relatar os fatos, pois foi silenciada pelo poder. Avisa a seus carrascos que podem tentar, mas não conseguirão apagá-lo da vida nacional, pois ele não é mais um homem comum. Diz que suplantou a condição humana e atingiu outra dimensão.
Estamos falando, como o improvável leitor já há de ter notado, do francês Georges Jacques Danton (1759-1794). Em termos menos vagos, falamos aqui do personagem Danton tal como foi retratado no filme que leva seu nome, Danton, o Processo da Revolução, uma produção de 1983 que envolveu três países, França, Polônia e Alemanha, sob a direção do polonês Andrzej Wajda. Baseado em fatos e pronunciamentos registrados pelos historiadores, o filme reconstitui os dias em que o tribunal revolucionário em Paris condenou à guilhotina o exuberante orador e expoente maior da Revolução Francesa. Numa cena especialmente dramática, Danton se encontra no tribunal. Sabe que não terá escapatória. A farsa judicial é flagrante. Ele protesta e ganha a palavra. No grito. Reclama dos policiais que impediram um jornalista de tomar notas. Começa a falar.
“Por que é preciso me matar? Só eu posso responder. Devo morrer porque sou sincero. Devo morrer porque digo a verdade. Devo morrer porque assusto. Eis as razões que levam ao assassinato de um homem honesto”.
Como não adianta mais recorrer aos fatos, apela para o sobrenatural, como alguém que se visse transfigurado em mito: “Eu não desaparecerei. Não! Eu falo! E falarei até o fim! Pois sou imortal! Sou imortal, porque sou o povo! O povo está comigo!”.
À beira de perder o pescoço, Georges Danton inventou a própria imortalidade. Era o que lhe restava. Apesar da retórica triunfalista, faleceu no dia 5 de abril de 1794, aos 34 anos de idade. Não consta que depois de morto se tenha manifestado magicamente para conduzir os cidadãos franceses. Mesmo assim, naqueles dias, e por muitos anos, o Danton morto teve quase o mesmo encanto que o Danton vivo.
Palavras semelhantes se ouviram de Sócrates, no ano 399 antes de Cristo, quando, aos 70 anos de idade, foi condenado pela assembleia em Atenas a tomar cicuta. Prenunciou que a História reconheceria a injustiça que a Justiça da pólis armou contra ele. Talvez tivesse razão.
Muitos tentaram enveredar pela mesma oratória, às vezes com êxito e outras vezes, não. “A História me absolverá”, declarou um jovem Fidel Castro, em 1953, ao ser julgado e condenado pelo ataque contra os quartéis de La Moncada e Carlos Manuel de Cespedes, em Santiago de Cuba. Passados mais de 60 anos, a dúvida se agrava: absolverá mesmo?
Passemos agora ao Brasil. Há poucos meses Luiz Inácio Lula da Silva, prestes a se entregar às autoridades que o levariam ao cárcere, discursou às portas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Declarou que se tinha transformado numa “ideia”. Traduzindo: não era mais um ser humano comum. Naqueles dias, suas palavras foram comparadas à carta-testamento de Getúlio Vargas – outro que proclamou estar prestes a entrar para a História -, mas, aí, a analogia talvez não dê conta do que se passa. Por intuição ou aconselhamento, Lula filiou-se menos à tradição populista, embora não a dispense, e mais à tradição da política que almeja elevar-se à ordem das representações míticas.
O buraco, portanto, é mais acima. A exemplo de Danton, o ex-presidente falou como quem se sente maior do que a pena que lhe deram. Danton imaginava que sobreviveria à guilhotina. Lula profetizou que seu corpo político não caberia dentro de uma cela de cadeia e que, mesmo preso, subsistiria atuante.
Muito já se disse – e muito ainda se vai dizer – acerca dos mitos em geral. Seria ocioso e despropositado dissecar esse conceito aqui. Mas um dos traços desse conceito merece ser lembrado: trata-se da desconexão entre a inexistência material do mito e os efeitos reais, incontestáveis, que ele gera no mundo das pessoas de carne e osso. O mito inexiste e, não obstante, atua sobre a realidade. Vemos isso todos os dias nas religiões, na cultura, nas crenças populares e, para o bem e para o mal, vemos isso também na política.
Logo após a prisão de Lula, escrevi um pequeno artigo para o jornal O Globo (A Justiça obscura e sua tragédia, 25 de janeiro, pág. 10) em que afirmei: “Agora, o Lula condenado vai brilhar mais que o Lula candidato”. Acho que eu não estava de todo errado. Um político encarcerado, condenado em segunda instância, impedido de ser candidato segundo a legislação vigente, poderá receber os votos por meio de um símbolo que se ponha em seu lugar. Temos aí um candidato que não existe juridicamente – e que será votado por meio de outro que encarne a “ideia” Lula.
Bem sei que a palavra mito é meio arroz de festa, qualquer um a invoca, sem a menor cerimônia, até mesmo nas eleições em curso. Mas que diferença isso faz? Na nossa mitologia meio mequetrefe, meio rastaquera, o candidato que lidera as pesquisas, posto para fora do pleito por força da legalidade eleitoral (as bases legais da democracia se afunilam como o buraco de uma agulha), receberá votos mesmo assim. Teremos uma eleição totêmica.
*Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP