No 70.º aniversário da TV brasileira a carranca do arbítrio ainda rosna
Falarão de Hebe Camargo. Quando foi ao ar o primeiro programa da primeira estação de televisão brasileira, a TV Tupi, na noite de 18 de setembro de 1950, Hebe estava lá, na companhia de Lima Duarte e Lolita Rodrigues. Falarão dos festivais da Record, que no final dos anos 1960 redesenharam as feições do cancioneiro popular. Falarão da estreia do Jornal Nacional, em 1969, e da Copa do Mundo de 1970.
Talvez alguns festejem (deveriam festejar) a novela Gabriela, da Rede Globo, que nos trouxe cores mais verdadeiramente intensas do que aquelas que a gente via nas calçadas, nas beiras de rio, nas tardes compridas do verão da Alta Mogiana. (A TV em cores chegou como uma luz mais que solar: realizou a façanha de empalidecer a natureza.) Encarnada por Sônia Braga, a coloridíssima Gabriela subia no telhado de vestido curtinho, azul e branco, para recuperar uma pipa (raia) e fazer despencar o queixo alheio: do Seu Nacib, de toda a cidade cenográfica e dos pais de família do Brasil de ponta a ponta.
Na semana que vem, quando a televisão brasileira comemorar seu 70.º aniversário, lembranças afetivas e afetuosas encherão as telas eletrônicas. Vai ser bom de (re)ver, desde que não abusem demais das pieguices.
Vai ser bom, mas também vai ser ruim. Dificilmente nós veremos o que nunca vimos na televisão, quer dizer, dificilmente veremos aquilo que a exuberância imagética dos monitores pátrios sempre encobriu. No correr dos primeiros anos da década de 1970, quando este jornal aqui penava sob censura estúpida, a televisão brasileira contornava diplomaticamente os contratempos com a tesoura federal e brilhava solta, via Embratel, envolvendo com seu arco-íris subserviente o bueiro moral e institucional da ditadura militar. Sobre isso não nos falarão em demasia.
A televisão brasileira deu unidade imaginária, festiva e deslumbrada a uma nação desgrenhada pela corrupção dos costumes cívicos, pelo desvio de poder, pelo enriquecimento subterrâneo dos apaniguados, pela ignorância oficializada, pela prática diuturna da tortura política, pelo assassinato de dissidentes e, finalmente, pela ocultação sistemática, disciplinada e industrializada de cadáveres. Isso não vai ser tão realçado na festa da semana que vem. Talvez um ou outro entrevistado faça menção, mas sem alarde. Quando os videoteipes de estimação cintilarem na tela, nós não assistiremos a explicações a respeito do lado triste da história. O que a TV sonegava sonegado seguirá.
Talvez alguém conte que houve um tempo nestas terras em que a telenovela falava mais da realidade que o telejornal. É necessário lembrar. Enquanto os noticiários perfilados vendiam aos telespectadores uma peça de ficção ufanista, as telenovelas traziam cada vez mais cenas de rua, tipos populares, dilemas autênticos dos brasileiros de carne e osso. Para inverter a ênfase da notícia, que era a inflação em escalada vertical, o apresentador trombeteava o “rendimento recorde na poupança”. Na sequência, a novela falava de racismo, de corrupção, até de reforma agrária.
Celebrarão o talento, mas não destacarão que a TV em rede nacional foi o projeto cultural mais caro à ditadura: a integração do País pela imagem. Pode ser que digam que o Brasil ganhou sua identidade moderna apenas com a TV, o que é fato, mas não é provável que expliquem, em rede nacional, que essa identidade imaginária acobertou o prosseguimento dos desmandos e das atrocidades no poder.
O que aconteceu no Brasil foi algo único, difícil de entender e de explicar. Logo depois da queda da ditadura, era comum jornalistas estrangeiros perguntarem aos estudiosos locais: mas como é possível que um país com tantos atrasos sociais e civilizatórios tenha erguido uma televisão tão avançada e tão bem-sucedida? A melhor resposta era: justamente por isso, tudo o que você vê de ultramoderno na televisão brasileira corresponde ao que há de mais arcaico na sociedade que a gerou.
A televisão brasileira é um portento, um feito continental, uma obra que impressiona os céticos mais azedos: seus publicitários são consagrados no mundo inteiro, alguns de seus novelistas podem figurar no panteão dos maiores artistas do nosso tempo, alguns de seus animadores reluziram como gênios da raça (e tome Chacrinha!). Mas tudo isso, cada pedacinho disso, só existiu para tecer um país de mentira sobre a podridão do país de verdade. Não é por acaso que a televisão não transmite cheiro.
Sobre essas coisas tristes não falarão muito, não. Pouco falarão das chagas constitutivas do passado. Principalmente nada dirão sobre a abominável chaga do presente: a triangulação promíscua entre redes de televisão, igrejas triliardárias e partidos políticos. Nada falarão do fundamentalismo ultraconservador que abre as estradas para o galope dos fascistas supostamente liberais. A máquina luminescente que no passado integrou um país para sequestrá-lo de si mesmo agora promove fantasias mais nefastas. Na segunda-feira, em cadeia nacional, o presidente urrou que defende a democracia (então, tá) e elogiou a ditadura militar. Nos 70 anos da TV, a carranca do arbítrio ainda rosna.
*Jornalista, é professor da ECA-USP