Ampla defesa engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária
Estou de acordo com a afirmação que li no GLOBO de domingo, 3 de novembro, na página 2, de que “nas democracias consolidadas o padrão é a pena começar a ser aplicada na condenação em segunda instância”. Outra contudo, a partir do que está escrito na nossa Constituição, é a minha convicção.
Pois ela estabelece, no seu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.
A distinção entre ambos é evidente: o primeiro — inciso LVII — diz respeito à prisão preventiva, o segundo — inciso LXI — ao cumprimento de pena.
Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.
A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura — e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo — me traz serenidade.
Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao direito positivo.
E uma afirmação de Kelsen também ressoa, cotidianamente, em meus ouvidos: a justiça absoluta é um ideal irracional; a justiça absoluta “ só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus (…) temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada”. A Justiça é lá em cima!
Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do habeas corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.
A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.
Em certos momentos a violência integra-se ao cotidiano da nossa sociedade. Cumpre então aos juízes permanecerem atentos, em especial naqueles de desvario nos quais as massas despontam na busca de uma ética que irremediavelmente conduz ao “olho por olho, dente por dente”. Isso lhes incumbe impedir no exercício da prudência do direito.
Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5º, inciso LVII da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.
Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariar. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra…
A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32, 15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.
*Eros Roberto Grau é ministro aposentado do STF