O direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública
Desde a eleição de Donald Trump em 2016, juristas como eu têm sido bombardeados por e-mails de jornalistas que querem saber se os Estados Unidos estão passando por uma “crise constitucional” ou caminham para ela. A maioria dos questionamentos tem sido motivada pelo desapreço do presidente às leis, incluindo sua interferência na investigação do promotor especial Robert Mueller sobre a interferência da Rússia nas eleições, seus ataques verbais a jornalistas e juízes e seus esforços para lançar investigações contra seus adversários políticos.
Uma crise constitucional, devidamente entendida como um ponto de inflexão que pode levar ao colapso ou transformação do sistema, não ocorreu. Mas tal crise parece agora cada vez mais provável. Não estou falando das eleições (embora elas possam produzir uma crise constitucional se o resultado for apertado, ou na improbabilidade de Trump de alguma forma se recusar a deixar o cargo). Na verdade, estou me referindo a uma crise que poderá ocorrer mesmo se Trump perder. Essa crise surgiria de uma tensão que existe ao longo de toda a história americana; isto é, entre os tribunais e um sistema de democracia que concede o poder máximo ao povo.
Até hoje houve duas crises constitucionais na história americana. Ambas envolveram um choque entre a Suprema Corte e autoridades eleitas apoiadas pela opinião pública. A primeira começou com o infame caso Dred Scott versus Sandford em 1857. Nesse caso, a Suprema Corte julgou que os afro-americanos não eram cidadãos dos EUA e que o Compromisso de Missouri de 1820 – que adiou a guerra civil ao fornecer uma fórmula para dividir o território entre Estados pró-escravatura e Estados pró-abolicionistas – era inconstitucional.
A decisão da Suprema Corte inflamou as tensões entre o Norte e o Sul e contribuiu para a Guerra Civil, em parte ao bloquear o caminho para um comprometimento. A crise constitucional que se seguiu ultrapassou o tempo de duração da guerra em mais de uma década, com a Suprema Corte continuando a enfraquecer a legislação e as emendas constitucionais que deveriam proteger os escravos libertos, e o Congresso retaliando com a retirada da jurisdição da Corte. A resolução definitiva confirmou a abolição da escravidão e a união dos Estados, mas preservou um sistema segregado no Sul.
A segunda crise aconteceu na década de 30, quando a Suprema Corte derrubou estatutos do New Deal que deveriam tratar da emergência econômica provocada pela Grande Depressão. Em 1937, eleito pouco antes com uma vitória esmagadora, o presidente Franklin D. Roosevelt propôs uma lei para aparelhar a corte com juristas pró-New Deal. Embora a proposta tenha sido derrotada, a Suprema Corte recuou, revertendo sua oposição à regulamentação econômica. Mesmo depois de Roosevelt ter conseguido preencher as vagas e garantir uma maioria simpática, a Suprema Corte permaneceria receosa por outros 20 anos.
Dada a exaltada volatilidade política atual, não há como saber exatamente que forma a próxima crise constitucional assumiria; no entanto, seu contorno geral começa a ficar aparente. Assim como nas disputas anteriores, o direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública. Desde os anos 80, decisões conservadoras vêm coagindo as regulamentações econômicas nacionais – repetindo a anteriormente desacreditada postura da Corte pré-1937 – e criaram o direito individual da posse de armas, fortaleceram os direitos religiosos, derrubaram restrições aos financiamentos de campanha, enfraqueceram as proteções às minorias raciais e corroeram o direito ao aborto.
À esquerda, a insatisfação com a Corte vem fervendo em fogo brando desde a década de 80, mas dois acontecimentos levaram essa raiva ao ponto de fervura em anos recentes. Primeiro, o Affordable Care Act (Obamacare), a conquista progressista que foi a marca dos últimos 20 anos, foi colocado sob grave ameaça. A lei foi confirmada por pouco pela Suprema Corte em 2012 e desde então ela vem sendo surrada por uma série de desafios jurídicos nas instâncias inferiores da Justiça. Se a Suprema Corte emitir decisões ainda mais desfavoráveis ao Obamacare, o futuro não só desse programa como também o de qualquer legislação progressista ambiciosa estará em dúvida.
Em segundo lugar, os democratas não confiam mais que os republicanos jogarão de acordo com as regras no que diz respeito a nomeações de magistrados, graças às reviravoltas dos republicanos nas nomeações para a Suprema Corte. Tendo se recusado até mesmo a apreciar a indicação de Merrick Garland pelo presidente Obama para a Suprema Corte em 2016, alegando a aproximação das eleições presidenciais, a maioria republicana do Senado agora se apressou para sabatinar a indicada por Trump, Amy Coney Barrett, menos de um mês antes das próximas eleições.
Essa má-fé, juntamente com a má sorte no “timing” do surgimento de vagas na Suprema Corte, praticamente garante que haverá uma maioria conservadora na Corte, capaz de bloquear as propostas legislativas democratas por pelo menos os próximos quatro anos – e provavelmente por muito mais tempo.
A combinação de uma Suprema Corte de direita com a visível má-fé dos republicanos encorajou os democratas a jogar duro. Muitos à esquerda querem que o adversário de Trump, Joe Biden, se comprometa a “aparelhar a corte” se ele for eleito. Isso significaria aumentar o número de assentos – supostamente de nove para treze – para que mais quatro juízes possam ser nomeados e assim criar uma maioria amigável de 7 a 6 para uma agenda liberal.
É difícil exagerar o significado dessa proposta. O plano de Roosevelt de aparelhar a corte sofreu uma derrota devastadora e causou um dano político duradouro à sua Presidência. Aparelhar a Corte é um ato radical, uma tática de déspotas. E a Suprema Corte continua relativamente popular entre a população. Mesmo assim, Biden, apesar de seus instintos moderados, não tem sido capaz de se afastar da ideia, sem dúvida por estar preocupado com a reação da ala esquerdista do Partido Democrata.
Mas o problema de Biden não é com a esquerda; é, ou será, com a Corte. Afinal, sua campanha vem se concentrando cada vez mais na promessa de serviços de saúde e numa resposta mais forte à pandemia – duas áreas com as quais os juízes conservadores vem demonstrando grande hostilidade. Assim, se Biden vencer as eleições e conseguir a maioria nas duas câmaras do Congresso – algo de que ele precisará para implementar qualquer plano de aparelhamento da Corte -, ele enfrentará um dilema. Se ele tentar aparelhar a Corte, corre o risco de perder apoio dos democratas moderados, aumentando a polarização política e prejudicando a posição da Corte aos olhos da população. Mas se ele não fizer isso, poderá acabar politicamente impotente.
Até mesmo Roosevelt ficou embaraçado demais para chamar seu projeto de lei de plano de aparelhamento da Corte. Em vez disso, ele alegou que os juízes mais velhos do Judiciário federal precisavam ser complementados por colegas mais jovens. Biden, longe de gozar da mesma popularidade de Roosevelt, não tem boas opções a não ser esperar que os juízes conservadores da Corte demonstrem bom senso e moderem sua hostilidade com a legislação popular e as ações do governo.
John Roberts, presidente da Suprema Corte, demonstrou até aqui que isso é possível. Mas com a adição de Barrett à Corte, Roberts poderá se ver em minoria. E se Barrett unir-se aos outros quatro conservadores linha-dura em anular a determinação de um governo democraticamente eleito, a crise constitucional decorrente poderá levar anos para ser resolvida. (Tradução de Mário Zamarian).
*Eric Posner, professor na Universidade de Chicago, é autor de The Demagogue’s Playbook: The Battle for American Democracy from the Founders to Trump (All Points Books, 2020). Copyright: Project Syndicate, 2020.