Especialistas alertam que país vive a iminência de entrar numa fase mais aguda de contágio. Virologista pede ação imediata enquanto esfera privada adota ações de distanciamento social
Enquanto a esfera privada já se movimenta para suspender eventos e evitar aglomerados de pessoas por conta da expansão do coronavírus no Brasil, o poder público ainda não considera a adoção de medidas de distanciamento social para conter a incidência da covid-19. A avaliação do Governo Federal é de que o país ―com mais de 100 casos confirmados, se considerado o balanço oficial da pasta, mas também a confirmação de hospitais― enfrenta um cenário ainda controlado, embora admita que ações mais enérgicas podem ser adotadas caso haja um aumento exponencial no número de infectados, o que poderia sobrecarregar rapidamente o sistema de saúde. Por ora, o Governo decidiu obrigar que pacientes com a doença (assim como pessoas que tiveram contato prolongado com infectados) fiquem em isolamento domiciliar. E determina que, num cenário onde não se sabe muitos detalhes sobre o comportamento do vírus em clima tropical e diante das características assimétricas das regiões de um país continental como o Brasil, caberá aos próprios Estados e municípios decretarem quarentena, um ato formal para impedir o trânsito de pessoas quando a capacidade de assistência aos pacientes estiver comprometida. Especialistas avaliam que o Brasil está na iminência de entrar na fase de transmissão sustentada da doença, com casos que não têm relação com viagens ao exterior e cuja velocidade de contágio é mais aguda, e defendem que Governo precisa estar preparado para impor medidas mais restritivas antes que o sistema de saúde comece a se esgotar.
Neste momento, o Governo tem focado em reforçar o sistema de saúde para atender os infectados. Reabriu 5.811 vagas desocupadas do Mais Médicos e anunciou que garantirá o horário extendido em 40% das equipes de saúde para reforçar o atendimento nos postos de saúde, onde espera resolver 80% dos casos. Também afirmou que dobrará o número de leitos de retaguarda exclusivos para tratar pacientes graves com coronavírus. Ao todo, serão 2.000 leitos que poderão ser alocados conforme necessidade, quando a capacidade de atendimento já disponível nos Estados se esgotar.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem defendido que medidas mais restritivas não são necessárias neste momento. O Ministério da Saúde contabiliza 77 casos, mas confirmações de Estados e hospitais mostram que o Brasil já tem mais de 100 casos. O secretário executivo da pasta, João Gabbardo, afirma que ―diferente da Itália, cujo sistema de saúde que é referência internacional colapsou diante de um boom de casos― o Brasil tem tido tempo para planejar os passos, caso haja um descontrole da doença, e que o país ainda não discute impor bloqueios sanitários.
“Não existe nenhuma orientação do Ministério da Saúde nesse sentido. Pode vir a acontecer? Não sei”, afirma. O Brasil publicou uma portaria que obriga infectados e pessoas que tiveram contato prolongado com eles, como quem vive na mesma casa, permaneçam em isolamento por 14 dias. Caso apresentem sintomas da doença após esse prazo, o isolamento pode ser prolongado por mais 14 dias. Apesar de ser obrigatório, Gabbardo diz que a permanência dessas pessoas em casa é um “contrato social, de civilidade”. Caso seja identificado o descumprimento, medidas punitivas podem ser determinadas na esfera judicial. Nesta quinta-feira, o ministro da Justiça Sergio Moro pediu “autorresponsabilidade” da população, mas destacou que isolamento e quarentena podem ser impostos compulsoriamente no Brasil. “No isolamento não vai ter ninguém na casa da pessoa dizendo ‘olha, você não pode sair’. É um contrato social, de civilidade. A quarentena é um ato de restrição. É um guarda que vai monitorar a saída. Quando eu restrinjo o ir e vir das pessoas, tenho uma série de medidas a garantir: água, comida, energia”, explicou Gabbardo.
Hora de agir?
A avaliação é que o Brasil ainda não está nessa fase, embora especialistas venham alertando a iminência de o país enfrentar uma fase mais aguda da doença. E a necessidade de respostas rápidas. O virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, considera que o prognóstico da pandemia é “tenebroso”. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, ele diz que o coronavírus tem o potencial para matar até 15 milhões de pessoas no mundo (e 257.000 no Brasil) caso não seja contido, segundo um estudo da Universidade Nacional da Austrália. Zanotto avalia que o Brasil tem perdido tempo e vê no distanciamento social o único caminho para evitar a propagação rápida da doença, a exemplo do que outros países vem fazendo.
O momento certo para a implementação de medidas restritivas não é unanimidade entre especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, mas há um consenso de que o Governo precisa agir antes que o sistema de saúde comece a colapsar. “Se proibir aglomeração, você freia a transmissão aguda porque diminui o contato entre pessoas, mas também prolonga o tempo em que o microorganismo vai permanecer transmissível”, explica o infectologista Guilherme Henn, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
Ele diz que reduzir o número de infectados é positivo num primeiro momento, porque a ação ajuda a evitar uma grande quantidade de casos graves da doença ao mesmo tempo, o que contribui para um colapso na capacidade de assistência como o da Itália. No entanto, pondera que medidas como esta devem ser avaliadas com cautela. “Se a gente recomenda medidas mais drásticas quando não são necessárias, não consegue conter o virus e só alimenta pânico e incertezas”, diz. O infectologista também acrescenta que há um efeito colateral de aumentar o tempo de transmissibilidade do vírus, já que a população segue sem contato com ele e não cria defesas naturais. Isso significa que o vírus pode continuar contaminando durante um período maior, ainda que de forma mais lenta. “De qualquer forma, é muito melhor você ter 150 mil casos graves de UTI ao longo de um ano do que em um único mês em termos de saúde pública”, analisa.
Henn afirma que há varios estudos com projeção de contaminação e propagação da doença, mas considera que as estimativas são “grosseiras”, já que se baseiam na experiência internacional e não há muitas respostas sobre o comportamento do coronavírus em clima tropical. O clima ainda é uma aposta para uma disseminação mais lenta da doença no país, mas especialistas e autoridades já começam a se preocupar com um possível agravamento diante da chegada do outono, no final deste mês. “A evolução da epidemia é tão dinâmica que as autoridades precisam estar atentas para agir assim que os casos evoluírem”, afirma o infectologista. Para ele, as características climáticas de cada região também deverão influenciar no enfrentamento sobre o coronavírus. Henn diz que o aumento exponencial em locais específicos nos últimos dias, como aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, não são indicativos de o país inteiro precisa adotar medidas que essas regiões venham adotar.
Já o infectologista Juvêncio Furtado avalia que o Governo age certo ao analisar primeiro o tamanho do problema para depois adotar medidas mais restritivas. Ele avalia que o SUS tem condições de responder rapidamente ao tratamento de infectados pela sua ampla capilaridade, com ressalvas ao caso de a propagação atingir uma “proporção absurda”, o que ele diz que não está previsto. “Se houver bom uso, sem alarme e fluxo de pessoas em grande escala nas unidades de emergência, acho que a rede tem essa capacidade”, defende. A orientação é de que pessoas que apresentem sintomas procurem os postos de saúde para orientações. Os hospitais deverão receber apenas casos mais graves da doença. Nesta sexta-feira, o Ministério da Saúde discute ações para fortalecer a rede de média e alta complexidade.