O que surgiu com o aplauso à cena de ‘Tropa de elite’ transformou-se numa necropolítica
Em 2007, o filme “Tropa de elite” mostrava uma cena na qual o Capitão Nascimento, do Bope da PM do Rio, queria saber onde estava o traficante Baiano, espancava um jovem e mandava que o torturassem asfixiando-o com um saco de plástico. Esse momento foi aplaudido em muitas salas do país. Passaram-se 12 anos, Jair Bolsonaro está no Planalto, e Wilson Witzel (Harvard Fake’15) governa o Rio de Janeiro. Durante a campanha do ano passado, o capitão-candidato foi a um quartel do Bope, discursou e repetiu o grito de guerra de “Caveira!”. Eleito governador, Witzel anunciou sua plataforma para bandidos que empunhassem fuzis: “A polícia vai mirar na cabecinha e… Fogo!”
As plateias de “Tropa de elite” haviam mandado um sinal, e ele materializou-se na eleição. Tudo começou ali. O cidadão que aplaudiu a cena da tortura acreditava que aquele deveria ser o jogo jogado, reservando-se o direito de achar que só se deve torturar quem se mete com traficante ou que só se deve acertar a cabecinha do sujeito que vai para a rua com um fuzil. Passou-se um ano, não se sabe como o ex-PM Fabrício Queiroz “fazia dinheiro”, e a polícia do Rio acerta não só cabecinhas de bandidos, como também crianças. O cidadão do aplauso é capaz de fingir que não sabia que essa seria uma das consequências da sua manifestação de felicidade. Por trás de cena do Capitão Nascimento havia muito mais.
O repórter Rafael Soares mostrou um aspecto desse desfecho. No dia 13 de novembro de 2014, um PM que servia no Bope tentou convencer o traficante Lacosta a executar um major que atrapalhava os negócios do setor:
“Manda ver onde mora e quando ele for sair da casa, forja um assalto e rasga ele”.
Depois entrou em detalhes:
“Glock com silenciador e carregador goiabada de 100 tiros pow vai brincar com ele. Esse cara tá com marra de brabo.”
Dois meses antes dessa conversa, a PM do Rio havia prendido 23 policiais acusados de extorsão. Entre eles estava o terceiro homem na hierarquia da corporação, sob cujas ordens ficavam os comandantes do Bope.
O dilema da segurança nas grandes cidades brasileiras nunca esteve num confronto simples, como o da retórica de Bolsonaro e Witzel, com o Capitão Nascimento de um lado e o traficante Baiano do outro. Nas camadas do meio estão policiais, milicianos e todas as combinações possíveis com a bandidagem. Aquilo que começou com o aplauso à cena de “Tropa de elite” seguiu seu curso e transformou-se numa necropolítica. Ela finge que combate o crime, mas contém o ingrediente que inibe esse propósito: o PM que queria “rasgar” o major negociava com o traficante Lacosta, a quem chamou de “meu rei”, porque há quem precise de bandido vivo e solto. Lacosta vai bem, obrigado. A facção à qual ele se associou foi pioneira na criação de holdings com milícias.
Não há nada de novo nessa constatação. O ex-sargento PM Ronnie Lessa, acusado de ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco, teve uma carreira complementar à sua atividade no Bope. Foi guarda-costas de contraventor, teria ligações com o Escritório do Crime e na casa de um de seus amigos guardava 117 fuzis desmontados. Tinha amigos na milícia de Rio das Pedras e uma boa vida, a ponto de ter comprado uma boa casa no condomínio da Barra da Tijuca onde vivia o deputado Jair Bolsonaro.