A mensagem do ministro Celso de Mello para a repórter Mônica Bergamo tinha 15 pontos de exclamação. Diante da presepada do prefeito Marcelo Crivella na Bienal do Livro, o decano do Supremo Tribunal Federal fez um curto e indignado protesto contra as “trevas que dominam o poder do Estado”, a “intolerância”, a “repressão ao pensamento” e a “interdição ostensiva ao pluralismo de ideias”. Não deu nome aos bois, mas qualificou a manada: as “mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo (que) erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República !!!! ”.
Celso de Mello não é só o decano do Supremo Tribunal Federal, pois esse título mostra apenas que é o ministro que está lá há mais tempo, desde 1989. Ele é uma espécie de fiel da balança nas divergências e idiossincrasias de seus pares. Ele havia sinalizado seu desconforto em agosto passado, quando Jair Bolsonaro republicou uma medida provisória que havia sido rejeitada pelo Congresso: “Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade suprema da Constituição da República”.
Habitualmente oceânico em seus votos, o ministro foi breve em sua mensagem a Mônica Bergamo. Com 173 palavras, falou do tempo “novo e sombrio” que se anuncia. Seus 15 pontos de exclamação mostram que está zangado. É a zanga de um homem da lei. Acaba de sair nos Estados Unidos uma boa biografia de Oliver Wendell Holmes, o grande juiz da Suprema Corte, onde sentou-se de 1902 a 1932. Flor do orquidário de Mello, Holmes foi o autor do grande voto em defesa da liberdade de expressão que ficou em minoria na época mas hoje é um marco na jurisprudência americana. Certo dia, aos 90 anos, o juiz pediu a uma secretária que lhe lesse “O amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. A certa altura, mandou que parasse: “Filha, não vamos acabar este livro, sua chatice não é aliviada por sua pornografia”. Hoje “O Amante de Lady Chatterley” é apenas um romance chato. Quando a moça lia para Holmes, ele estava proibido nos Estados Unidos. (A licenciosidade de Lawrence é light se for comparada com a retórica de Bolsonaro.)
Celso de Mello mostrou que vai à luta contra “as trevas que dominam o poder do Estado”. Nessa briga Marcelo Crivella é um cisco no olho. O desconforto do ministro com as plataformas móveis de Jair Bolsonaro é grande e antigo. Antes mesmo da eleição, ele cogitava antecipar sua aposentadoria para não entregar sua vaga depois de uma eventual vitória do capitão. Mudou de ideia e pode ter se arrependido, pois em nove meses viu seus temores confirmados. No início do mandato de Bolsonaro, o ministro foi colocado na situação de esquentador de cadeira para Sergio Moro. Do Moro de janeiro resta apenas uma pálida sombra, disciplinado pela calistenia do Planalto, onde ensina-se que lá não se admite a figura de ministro com agenda própria. Quem samba fica, quem não samba pode ir embora. E Moro decidiu ficar.
Celso de Mello chegará à aposentadoria compulsória no seu 75º aniversário, em novembro do ano que vem. Até lá, escreverá boas páginas na defesa das “vias democráticas”, na luta da luz contra a treva.