O golpe se tornou hoje uma espoleta disparadora de radicalismos
Hoje, há 55 anos, um general em fim de carreira rebelou-se em Juiz de Fora (MG), onde comandava mesas. Em pouco mais 24 horas o governo constitucional do presidente João Goulart estava no chão. Em 1944 ninguém discutia o golpe militar de 1889, e em 1985 não se discutiu a deposição do presidente Washington Luiz. Em 2019 discute-se 1964 porque ele virou um par de unhas encravadas nos pés da direita e da esquerda, uma espoleta disparadora de radicalismos. Na sua versão recente, Jair Bolsonaro (PSL) falou em “comemorar” a data. Depois corrigiu-se, com um “rememorar”.
Bolsonaro tem uma visão pessoal da história. Ele disse que “não foi uma maravilha regime nenhum. E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura.”
Nesse caso, também não houve ditaduras no Chile e na Espanha. De certa maneira, não teria havido ditadura nem na União Soviética.
A deposição de Jango em 1964 foi um golpe que desembocou numa ditadura constrangida que escancarou-se em 1968. Goulart foi apeado por uma revolta militar vitoriosa e pelo presidente do Congresso, que declarou a vacância do cargo enquanto seu titular estava no Brasil. A posse do presidente da Câmara, no meio da madrugada de 3 de abril, foi enfeitada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, mas não tinha amparo na lei. (Dilma Rousseff foi deposta de acordo com o devido processo legal.)
A deposição de Jango foi pedida e saudada por quase toda a grande imprensa e por multidões que foram à rua festejando-a. Havia mais povo na Marcha da Família realizada em São Paulo no dia 19 de março do que no comício janguista do dia 13.
Se Jango foi deposto para que fosse preservado o regime democrático, esse sonho durou uma semana e se acabou quando os chefes militares baixaram um Ato Institucional que cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e demitiu juízes, generais e servidores civis.
A ditadura foi desafiada por um surto terrorista e reagiu instituindo a tortura e a execução de dissidentes como política de Estado. A isso Bolsonaro chama de “probleminhas” e o general Hamilton Mourão, de “guerra”.
A ditadura brasileira está mal digerida porque de um lado alimentam-se teorias como a dos “probleminhas” e a da “guerra”. De outro, chamam-se ações terroristas de “luta contra a ditadura”, quando o objetivo de algo como mil militantes de organizações de esquerda era a implantação da ditadura deles.
Aqui vão dois casos ilustrativos dessas duas fantasias:
Em 1968, o Comando de Libertação Nacional (o Colina, com cerca de 50 militantes) localizou no Rio o capitão boliviano que um ano antes participara da captura do Che Guevara na Bolívia. Ele morava na Gávea. Em julho, cinco meses antes da edição do AI-5, numa ação que envolveu três terroristas, mataram-no a tiros.
Em seu manifesto de criação o Colina dizia que “a luta armada é a única forma de dar consequência à luta do povo brasileiro” e “o terrorismo, como execução (nas cidades e nos campos) de esbirros da reação, deverá obedecer a um rígido critério político”.
O “capitão boliviano” era o major alemão Otto von Westernhagen, e o Colina fez de conta que nada teve a ver com o crime.
(Aos 21 anos, Dilma Rousseff militava no Colina. Não há registro de que tenha participado pessoalmente de ações terroristas.)
Quatro anos depois do assassinato de Westernhagen, o Exército descobriu um projeto guerrilheiro do Partido Comunista do Brasil na floresta do Araguaia (PA). No Natal de 1973, o grupo foi desbaratado, e nos meses seguintes o que seria uma guerrilha transformou-se numa caça a fugitivos que se escondiam no mato. Podiam ser uns 30. Foram todos executados, inclusive aqueles que se renderam, atendendo a oferecimentos da tropa. Cilon da Cunha Brum, o “Simão”, ficou mais de um mês detido antes de ser morto. Isso não é guerra.
Telma Regina Cordeiro Correa, a “Lia”, escondeu-se na mata durante dez meses. Era uma ex-estudante de geografia, expulsa da Universidade Federal Fluminense, tinha 27 anos e estava no Araguaia desde 1971. Ela foi vista por um camponês debaixo de uma árvore, depauperada e faminta. O jornalista Hugo Studart conta em seu livro “Borboletas e Lobisomens” que “Lia” tinha consigo um diário, cujas últimas anotações foram “estou nas últimas” e “não aguento mais”.
Avisada, uma tropa veio buscá-la. Studart acrescenta:
“‘Lia’ foi levantada do chão pelos militares. (…) Foi tratada na base militar de Xambioá. O suficiente para conseguir falar. (…) O soldado Raimundo Melo revelou que ajudou a colocar ‘Lia’ no helicóptero que a levaria a algum ponto da mata para execução”.
Isso é guerra?
Enquanto se falar em “luta armada contra a ditadura” e em “guerra”, 1964 continuará sendo unha encravada, uma em cada pé.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”.