As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós
O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.
Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.
Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.
É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da “normalidade”. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.
É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.
O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que “ninguém apanha de graça”, “não está nem aí para a Lei Maria da Penha” e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.
A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.
Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.
Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.