Decisões de presidentes devem obedecer ao interesse público, não o pessoal, familiar ou de grupos
Alguém precisa avisar ao presidente Jair Bolsonaro que ele foi eleito para presidir o País, não para se tornar dono da República e fazer o que bem entende. Pelo princípio da impessoalidade, definido no artigo 37 da Constituição, o mandatário tem de tomar decisões de acordo com o interesse público, não ao sabor dos seus interesses, vontades e crenças pessoais, nem para favorecer a si, à família, aos amigos ou a grupos específicos. Há controvérsias se é exatamente assim que Bolsonaro governa, fala e age.
O exemplo mais chocante foi a indicação do filho para a mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. Trata-se de um jovem de 35 anos que nunca pisou no Instituto Rio Branco, não é especialista na área nem um personagem de destaque na vida nacional. É filho do presidente, ponto.
E os dois exemplos mais recentes são retaliações do cidadão Bolsonaro, que aproveita o principal gabinete do Planalto e uma caneta Bic para se vingar de desafetos. Um é o cancelamento do contrato da Petrobrás com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Outro é a dispensa de publicação de balanços de companhias abertas em jornais. “Não precisa dar dinheiro para um cara da OAB”, aplaudiu Bolsonaro, que falou de forma cruel sobre o desaparecimento do pai de Felipe na ditadura militar, remexendo uma ferida que não é só da família Santa Cruz, mas de toda a Nação.
Onde está o interesse público no cancelamento do contrato? O escritório, especializado em Justiça do Trabalho, evitou em 2018 rombo de R$ 5 bilhões à Petrobrás em causas trabalhistas. Logo, a companhia não dá dinheiro “para o cara”, remunera um serviço bem feito.
“Retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, disse Bolsonaro, assumindo a intenção de vingança quando desobrigou a publicação dos balanços. A decisão é do governo, mas o interessado é o ex-candidato, insatisfeito com as revelações da imprensa sobre seu passado e entorno desde a campanha. Como, aliás, ela tem o dever de fazer.
Lembra a punição ao fiscal do Ibama que multou o cidadão Jair por pescar em área protegida. O fiscal cumpriu seu dever, o cidadão descumpriu a lei. Quem riu por último? Aquele que, flagrado na infração, pensou: “Ah, esse aí me paga!”. Pagou mesmo. O pescador assumiu e usou o poder contra um pobre fiscal.
Também não se pode classificar de impessoalidade a decisão do presidente de “não dar nada para esse cara”. Desta vez, não o presidente da OAB, mas o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, um desses “paraíba” que ousam ser de esquerda. Do varejo para o atacado, o governo federal conseguiu punir o Nordeste inteiro, com apenas 2,2% dos empréstimos da CEF.
É um direito de Bolsonaro não gostar de Dino, como é dos governadores do Nordeste não gostar de Bolsonaro. Mas não é um direito da pessoa do presidente usar seu poder contra uma região, a segunda mais populosa do Brasil. O interesse dessa população está acima das birras do Jair.
E o que falar sobre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas e, assim, municia os órgãos de fiscalização e controle contra a lavagem de dinheiro, prima-irmã da corrupção? Ia tudo bem, até que o Coaf bateu os olhos numa dinheirama de um tal de Queiroz.
Esse foi o fio da meada de uma história ainda muito mal contada sobre contratações, salários, depósitos e esquemas nos gabinetes do clã Bolsonaro. Tal como o fiscal do Ibama, o Coaf está sendo punido por simplesmente fazer o que tinha de fazer. Podia pegar todo mundo, não o filho “01” do presidente, Flávio, agora senador.
Pimenta nos olhos dos outros é refresco, mas nos olhos do poder arde, causa irritação e, no caso dos Bolsonaro, gera retaliação. O problema é combinar com a Constituição. O artigo 37 é claro, preciso, um alerta.