Bolsonaro tem crise de abstinência quando não persegue alguém. Vítima da vez é Nelson Teich
“Tratar isso como não essenci…, como… como não essen… como essencial é um passo inicial. Foi decisão do presidente… que decidiu isso aí. Saiu hoje isso? Manicure, academia… barbearia? Não… Isso aí… não é atribuição nossa.”
Foi assim, pego de surpresa, balbuciando, que Nelson Teich, ministro da Saúde, médico oncologista respeitado, com especialização em gestão em saúde, descobriu numa entrevista coletiva que não apenas não manda nada como passou a ser o novo saco de pancadas do presidente Jair Bolsonaro no governo.
Mal acabou de demitir Luiz Henrique Mandetta e de empurrar porta afora o “superministro” Sérgio Moro, o presidente já passou a desautorizar ninguém menos que o novo ministro da Saúde, justamente em meio à pandemia e com o número de mortos chegando a mil por dia. Por dia!
O enredo é bem conhecido. Primeiro, o presidente dá bronca no ministro ou auxiliar em entrevistas. Depois vai minando a autonomia e a autoestima da vítima. Por fim, demite ou pressiona para a demissão. No script, falas recheadas de autoafirmação: “Eu sou o presidente, pô!”, “eu que fui eleito”, “Eu nomeio, todos têm de ser afinados comigo”, “Quem manda sou eu. Ou vou ser um presidente banana?”.
A fila das vítimas é longa. Além de Mandetta e Moro, o delegado Maurício Valeixo, da PF, o general Santos Cruz, secretário de governo, o amigão Gustavo Bebianno, secretário geral da Presidência, o economista Joaquim Levy, do BNDES, e o cientista Ricardo Galvão, do Inpe. Sem falar na secretária da Cultura, Regina Duarte, que está em banho maria, nem nos superintendentes da PF no Rio, um atrás do outro. Em compensação, Ernesto Araújo (anti-China), Weintraub (anti-STF e antiportuguês) e Ricardo Salles (desmatamento) continuam muito prestigiados.
Assim como Regina Duarte, Nelson Teich assumiu sem nunca ter assumido e é uma ilha na própria casa, provavelmente nem sabe os nomes da sua equipe. Não indicou ninguém para o Ministério, engoliu uma penca de militares que não conhecia e nunca conseguiu apresentar um programa, um modelo de combate ao coronavírus. Da última vez que tentou, acabou cancelando a entrevista minutos antes do início.
Há um muro entre Jair Bolsonaro e Nelson Teich: a ciência. Apesar de bolsonarista desde a campanha de 2018, Teich tem uma biografia a zelar. Não vai jogar isso fora para agradar ao presidente, contrariando estudos científicos do mundo inteiro e pregando o fim do isolamento social e o uso indiscriminado de cloroquina.
Enquanto Teich admite até o lockdown em algumas circunstâncias e regiões, Bolsonaro mantém sua cruzada insana contra o isolamento e, portanto, para jogar mais e mais pessoas nas ruas, nas UTIs e nos túmulos. Enquanto o ministro avisa que a cloroquina não salva vidas e tem graves efeitos colaterais, o Dr. Jair “está exigindo” seu uso.
É assim, na base do achismo e centrado nele mesmo, que Bolsonaro solta uma polêmica MP livrando agentes públicos de responsabilidade por decisões durante a pandemia, define uma “guerra” contra o governador João Doria, confraterniza com o grande capital, tenta capturar eleitores pobres do PT e mantém sua relação esquizofrênica com deputado Rodrigo Maia. Ataca, depois chama em palácio e abraça.
Enquanto isso, convém ler e entender o artigo de ontem do vice Hamilton Mourão no Estadão, com múltiplos recados e puxões de orelhas no Judiciário, governadores e mídia, sem um pingo de crítica (ou autocrítica) aos graves erros do governo. “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”, decreta o vice. Impossível discordar. Mas faltou nomear quem efetivamente causa tanto mal assim.