Eliane Brum: Os humanos que o vírus descobriu no Brasil

Só poderá haver luto dos mortos pela covid-19 se houver luta – por investigação, responsabilização e justiça.
Foto: Bruno Kelly/Reuters/El País
Foto: Bruno Kelly/Reuters/El País

Só poderá haver luto dos mortos pela covid-19 se houver luta – por investigação, responsabilização e justiça

Tenho peregrinado pelos memoriais e por páginas desconhecidas de redes sociais em busca dos fragmentos da vida dos mortos, em busca dos testemunhos dos enlutados, para que também eu possa acreditar com eles que houve uma morte. E então empresto o meu corpo e escrevo a partir destes fragmentos. Essa crônica que faço a partir do real me ajuda a ficar em pé. É o meu jeito de estar junto num velório que não velou, num enterro que sepultou também os vivos, porque sem despedida, num sepultamento em que os familiares foram compelidos a mentir a causa da morte para não serem estigmatizados pela vizinhança. Sim, porque também isso está acontecendo no Brasil. Morrer de covid-19 tornou-se uma vergonha a ser ocultada, assim como subnotificados são os números oficiais.

Perambulo pela história dos outros para costurar fiapos de vida. Não reportagens ou depoimentos, como costumo fazer, mas pequenas crônicas como estas a seguir.

Era o pijama azul, aquele que tinha a mancha de vinho no peito. Ele sempre derramava coisas na roupa quando comia ou bebia. Queria enterrá-lo com ele, pra que possuísse algo seu que pudesse reconhecer na travessia, para que não fosse para a escuridão sem algo familiar, para que as minhas tentativas sempre fracassadas de tirar a mancha fossem uma lembrança de que tinha sido tão amado. Mas você me foi arrancado, eu não pude acariciar sequer o seu rosto. Eu não perdi apenas a sua vida, eu perdi também a sua morte.

Quando ria, ela tentava esconder um dente amarelado, uma escultura estragada por um dentista barato, que não prestou atenção no seu sorriso. E agora, quando ela é arrancada de mim, é este dente torto, abalroado pela vida, que me falta mais. Como se só ele pudesse me devolver alguma sanidade na insanidade de não poder dizer a você que eu nunca me esforcei para lhe ajudar a pagar o dentista porque não queria perder nem um pedacinho de você, nem mesmo aquele dente que a constrangia, mas que eu amava mais porque era a prova de que você era deste mundo e não escaparia. Sim, eu sempre achei que você era perfeição que eu não merecia, mas queria. E então, sequestraram você de mim. E eu, que contava tudo a você, só a você, não tenho a quem contar que até seu dente ruim me faz falta.

Eles disseram que as crianças tinham muito muito muito menos chance de pegar o vírus. Eu me agarrei a isso. Você, minha filha, tinha bochechas grandes demais, rosadas demais, para caber um vírus. E quando corria, você tinha uma confiança absoluta em seus passos incertos. E quando caía, você apenas ria, anunciando que não temeria as quedas que viriam. Eu, sim. Eu temia todas as suas quedas. E agora que você é só uma foto num porta-retratos, agora que nem me permitiram embalar o seu corpo, agora que você passou naquele pequeno caixão fechado onde eu não poderia reconhecer você, a minha menina, eu queria só ter a chance de ver você cair e ajudá-la a levantar. Preciso te dizer que não acredito. Como vou saber que não era outra naquele caixão? Como vou saber que você não está viva caindo de bunda em outro chão e rindo como se tudo isso fosse apenas mais uma graça do mundo que você apenas começava a descobrir? À noite eu sonho, minha filha, que caminho até o cemitério e a arranco de lá. Abro aquele caixão como se fosse um porta-joias e resgato da escuridão e assim também eu saio do escuro onde estou desde que você passou numa caixa. E nunca mais, nunca, você sairá de novo do meu útero.

Disseram que você poderia morrer, afinal você era velho. Ouvi aquele animal falar coisas assim. Morrer os que têm que morrer. Deixaram você morrer, como deixaram tantos morrer. Não sabiam nada das suas pequenas delicadezas, nem das maldades, às vezes você gostava de ser mau, como quando ria ao me ver andando encurvada. Mas os que assim falavam não sabiam que você também me cobria, passava a noite me cobrindo, porque depois de velha meu sono se tornou errático e agitado, e eu jogava tudo longe como se tivesse raiva do cobertor. E você acordava para que meu pé não gelasse, e às vezes, nunca te contei, eu apenas fingia para ser cuidada por ti. E eu não pude. Não pude cuidar de você. Você teve febre, desapareceu dentro da boca do hospital e de lá foi vomitado num caixão lacrado. Eu não consigo explicar por que tenho medo de seguir o teu caminho, e o presidente do meu país diz que os velhos estão autorizados morrer. Não sei o que se passou comigo, eu queria te contar e talvez você soubesse, mas murchando entre dobras de pele enrugada (você lembra como a minha pele era lisa? Já não há ninguém para lembrar que a minha pele foi lisa), chorando dia após dia umas lágrimas secas que me esfolam os olhos ruins, eu ainda quero viver. E não sei para quê. Você saberia, você sempre sabia dos meus porquês.

Desde que ela desapareceu, porque para mim haverá de ser sempre um sequestro, já que não a vi, não a preparei, não a abracei, não pude dizer nada perto dos ouvidos dela. Desde que ela desapareceu só consigo pensar naquela penugem que ela tinha na nuca. Como se uma parte dela nunca tivesse desistido de ser bebê apesar de já ser uma mulher adulta. Quando ela era dura, no trabalho, eu ria para dentro de mim, porque só eu sabia da penugem que ela escondia. Só eu conhecia aquela verdade mais absoluta que qualquer outra que ela vendia ao mundo. E era isso que fazia com que me sentisse especial. Mesmo que ela fosse dura também comigo mais vezes do que seria necessário, ela me deixou chegar onde ninguém mais tinha alcançado, como um pico do Everest só meu, e me deixou ver. E agora, também a penugem está no silêncio dos mortos que não conseguem descansar porque não foram velados.

Eu cresci lendo histórias sobre a pandemia, em especial na Idade Média. As grandes pestes que devastavam um continente inteiro. Eu tentei convencer os Médicos Sem Fronteiras a me deixar acompanhá-los numa epidemia de ebola em Uganda anos atrás. Eu testemunhei como a doença de Chagas tinha se tornado uma maldição que atravessava ― e matava e marcava ― gerações de camponeses bolivianos porque poucos se interessavam em barrar aquelas mortes e assim aquilo que é evitável vai se tornando imutável. Eu já era repórter quando a Aids matou alguns dos meus ídolos. Ser jornalista é também aceitar que terá sua vida assinalada por mortes de quem nunca conheceu.

Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela não me surpreendeu. Quem escreve sobre a destruição da natureza, sobre a emergência climática, sabia que o tempo das pandemias chegaria. Gritamos há anos, e os indígenas, que sabem mais, há décadas. Quando as primeiras notícias chegaram eu estava num navio do Greenpeace, na Antártida, e ouvia as explosões dos icebergs. O que pode ser mais aterrador do que o continente gelado sem gelo? E então os jornalistas chineses que nos substituiriam na próxima etapa não puderam vir. E quando chegamos ao aeroporto, no Chile, havia pessoas de máscaras por todo canto.

Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença.

Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais.

Já escrevi bastante sobre os atos governamentais, sobre a campanha oficial de desinformação, sobre as declarações públicas de Bolsonaro. Não há como analisar o impacto da covid-19 no Brasil sem relacioná-lo com a ação intencional do Governo Federal de deixar morrer: a população em geral, e por consequência os mais pobres, o que significa os negros (pretos e pardos), que representam tanto a maioria da população quanto a maioria dos mais pobres. E sem relacionar com a ação deliberada de ampliar as condições para que a doença mate mais, caso explícito dos povos indígenas, bem fundamentada nos pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional. Nesta semana, o TPI arquivou “temporariamente” as denúncias com relação à pandemia, até que “novos fatos ou evidências” apareçam. Nada foi fechado, mas será preciso descobrir o que mais Bolsonaro precisa fazer — ou quantos mais precisam morrer — para que os juízes da Corte internacional sigam adiante. Com relação aos indígenas e à Amazônia, as denúncias seguem em aberto.

A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados.

Um negro, uma negra, talvez dissesse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos todos esses anos, enquanto nossos filhos morriam à bala e as pessoas se limitavam a “tocar a vida”? Um indígena, uma indígena talvez lembrasse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos em todos esses cinco séculos, enquanto sua sociedade ora nos exterminava, ora tentava nos assimilar, ora ambos, até hoje?

Sim. Essas perguntas, que apontam para a normalização do genocídio pela minoria dominante da sociedade, respondem. Efetivamente respondem. Mas, ainda assim. Ainda assim há um limite que foi ultrapassado no Brasil da covid-19. Se a pandemia acabasse hoje, e está longe de acabar, o que temos diante de nós é uma população de mais de 130.000 cadáveres de mulheres e de homens, a maioria deles adultos, mas também crianças e bebês recém-nascidos, uma população maior do que a da maioria das cidades brasileiras feita de corpos mortos. De vidas interrompidas. E cada uma destas vidas interrompidas deixou, segundo as projeções estatísticas, cerca de 1 milhão de enlutados, o equivalente a população inteira de algumas capitais do Brasil e do mundo que perderam pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia, filhos, amigos íntimos.

E sabemos ― é inaceitável que alguém possa ainda mentir que não sabe ― que parte destas pessoas poderiam ainda estar vivas se Bolsonaro e seu Governo tivessem: 1) combatido a covid-19 seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde; 2) liberado aos estados os recursos existentes no momento necessário, em vez de retê-los para alimentar disputas políticas; 3) mantido no ministério da Saúde um ministro que conhece o assunto e uma equipe gabaritada de sanitaristas e epidemiologias que já estavam lá; 4) agido emergencialmente em vez de negar a gravidade da doença; 5) orientado corretamente a população em campanhas responsáveis e bem fundamentadas; 6) feito todos os esforços para barrar a chegada da pandemia às terras indígenas, em vez de vetar água potável, leitos emergenciais e campanha de informação, entre outros barbarismos; 7) agido como chefe de Estado e dado o melhor exemplo.

O Brasil tem hoje uma nova geografia humana. E ela não é acidental. Temos essa cratera de mais de 130.000 pessoas a menos, como luzes que se apagam num curto espaço de tempo, deixando aqueles que as amavam no escuro de um luto que sequer é reconhecido. Uma cratera que segue se ampliando na velocidade de centenas de mortos por dia. Isso já é algo para além do possível.

Mas há mais. Há muito mais.

Em minha última coluna, eu perguntava: Como poderá barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer? Que naturalizou todas as formas de morte a ponto de tornar a covid-19 mais uma delas? Que normalizou que são os mesmos de sempre os que mais morrem e então tipo tudo bem? Que naturalizou o inominável que nos governa? Era uma pergunta difícil, a pergunta de quem vive num país em que o futuro foi negado à maioria, consumida pela mera reprodução das forças num presente contínuo.

Agora, minha pergunta é mais delicada. O que será dos que restarem quando a pandemia acabar? O que será dos que vivem esse luto que ninguém mais na história dessa humanidade viveu?

Em todos os países do mundo há pessoas lidando, nas mais diversas línguas e culturas, não apenas com a perda de quem amavam, mas com a despedida que não houve, com o cuidado que foi vetado pelo risco de contaminação, lidando com caixões lacrados e túmulos que não escolheram, quando não com a indignidade das valas comuns. Lidando com os abraços que não puderam acontecer. Essa tragédia ― ainda que com a evidência de que houve uma série de abusos e de descuidos evitáveis nos processos e nos sistemas de saúde ― é intrínseca a uma pandemia que só pode ser barrada impedindo a replicação do vírus em outros corpos, só pode ser barrada com isolamento físico (não social) e protegendo-se fisicamente (não socialmente) do outro.

A questão, no caso do Brasil, é que há mais.

Os enlutados enfrentam uma dor extra, que é a da invisibilidade pela negação da gravidade da pandemia. Famílias inteiras se dilaceram enquanto tantos festejam nos bares, buzinam nas ruas, desrespeitam o distanciamento, aglomeram-se. Se aqueles que escolheram ignorar a pandemia soubessem da dor dos que foram atingidos pela morte, será que mudariam, será que cuidariam, será que fariam o gesto?

“É atroz”, diz uma mulher que perdeu o marido, assistir a esse espetáculo das ruas cheias. Faz com que pareça que a morte do meu marido não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei no hospital e nunca mais vi? O que então é real? As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’ ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele não está? Como as pessoas podem estar nas ruas festejando enquanto uma parte da população está morrendo?”.

Liguei para Bruna Tabak, para que ela me ajudasse a compreender o que vivemos. Psicóloga especializada em cuidados paliativos, ela e outras duas profissionais atuam com grupos de familiares na Rede Apoio Covid-19 – acolhimento, escuta e memórias da pandemia, formada inteiramente por voluntários. “A palavra que se repete em muitas falas é arrancada”, conta Bruna. “Os familiares sentem que tiveram aqueles que amam arrancados. Com o arrancamento, é um rombo que se abre.”

Como fechar esse buraco numa sociedade que normalizou tanto a morte quanto a dor de quem perde, fazendo com o mais real de uma vida, que é a morte, seja encoberto por uma aura de irrealidade pela negação compartilhada da crise sanitária mais grave em um século? Bruna teve a generosidade de compartilhar algumas frases surgidas nos grupos de vivência do luto. Outras, encontrei em depoimentos na internet.

“Foi a pior coisa que nos aconteceu. Me senti devastada, sem rumo e sem chão. E como estamos vivendo dias anormais, ainda penso que não foi real.”

“Entreguei meu marido no hospital e recebi de volta três papeizinhos.”

“Eu não deveria ter levado o meu marido ao hospital. Nunca mais o vi.”

No hospital aquele que amamos é colocado fora do alcance, nem uma prisão de segurança máxima seria tão efetiva. A ligação prometida para aquele mesmo dia, com notícias, acontece três dias depois.

“O vírus não passa pelo telefone. Por que não ligaram pra gente?”

E nestes três dias tudo aconteceu, e ele estava sozinho.

Outra queria pelo menos ter a Bíblia de volta, ele era pastor. Aquela Bíblia, não outra, mas sim aquela, que o acompanhou por toda uma vida. Informaram à família que o livro estava contaminado, que fora “descartado”, a palavra terrível. Ele também teria sido “descartado”?

Vocês têm cinco minutos para se despedir. Pelo tablet. A pessoa que era tudo morria. O que você diz em cinco minutos? Como se vive com essa última imagem em um tablet? E o que você diz para a pessoa que te chama de “privilegiado” porque você pôde pelo menos ter uma imagem, enquanto ela atravessa as noites sem certeza do que havia naquele caixão que não pôde abrir? Quem te abraça diante do horror se agora você é também um risco, um possível vetor? Quem dá o contorno do seu corpo que se perdeu?

“Será que ninguém vê que eu sangro, aqui, bem aqui, onde ele me foi arrancado?”

“Como alguém que perdeu um familiar por covid-19 faz para sobreviver.” Ela preenche o espaço de busca do Google com esse pedido de socorro. E espera por uma resposta.

Eu sou um milagre”, ela se espanta. “Como estou sobrevivendo só com metade do coração?”

“Não poder me despedir me causa uma dor que vou carregar para o resto da minha vida.”

No momento do sepultamento, “sem despedida, sem poder olhar ele pela última vez, sem poder tocar as mãos e agradecer por tudo”.

“Na última vez que falei com a minha mãe ela me pediu, pelo celular, que a buscasse, que a tirasse do hospital. Nunca mais a vi, nem pela tela.”

“Não, não me diga para ter pensamento positivo. Não me diga para ser forte. Ser frágil é a prova de que sou humana. Me permita ser humana.”

Receber a notícia daquela maneira, “me matou viva”.

Ela sequer encontrou o caminho de volta para casa, nem sabe para onde levará os filhos, quando é atingida pela cidadã de bem: “Você tem certeza de que seu marido tomou cloroquina? Porque se tivesse tomado ele estaria vivo”.

Bruna Tabak fala de “uma dor que não descansa”. A voz da paliativista, a voz daquela que escuta, dói. Não é verdade que o verbo doer só tem a terceira pessoa. Eu doo, tu dóis, ele/ela dói, nós doemos, vós doeis, eles/elas doem. Gente dói. O que são então todos esses outros que fingem não nos ver?

A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como um esparadrapo arrancado com apenas um gesto.

Essa é a diferença no Brasil. O luto pela morte dos que amamos é parte inescapável da experiência de viver. Este luto é elaborado de forma singular, própria, por cada pessoa que perde. Mas, no Brasil da covid-19, o direito ao luto é violado por uma dupla perversão. A doença que matou seu pai, sua mãe, seu irmão ou irmã, avô ou avó, filho ou filha tem sua gravidade negada pela autoridade máxima do país. Para piorar, essa autoridade não está sozinha. A aberração de negar a gravidade de uma pandemia é compartilhada por milhões de pessoas, os milhões que lotam os espaços públicos sem necessidade, fazendo com que o real da morte se torne algo irreal. O delírio, quando coletivo, corrompe a realidade.

Torna-se muito mais difícil fazer luto quando esse luto não é reconhecido ― e não é reconhecido em frases de Jair Bolsonaro como “E daí?”, ou “Vamos tocar a vida”, ou “Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada” ou “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. No luto da covid-19, os brasileiros que perderam não tem o reconhecimento da magnitude da sua perda porque a morte pela doença foi normalizada. Sua dor, então, torna-se uma carta que não chega ao seu destino, uma carta que não é aberta pelo outro. É esse buraco que os memoriais tentam preencher, sabendo que podem apenas tecer uma rede em volta dele.

Essa negação da dor que silencia os enlutados e os condena ao ostracismo, mesmo entre seus vizinhos, é da ordem do traumático. Mas o que acontece hoje, no Brasil, é ainda pior do que o pior. Sobram indícios de que as mortes por covid-19 podem estar conectadas aos crimes de genocídio ou de extermínio, como já foi amplamente mencionado neste texto. Esses indícios também são negados por uma significativa parcela da população. E mesmo por alguns estudiosos do tema, que preferem, por razões que a razão não desconhece, afirmar que é “apenas incompetência” de Bolsonaro.

Se há fortes indícios de que a pessoa que você perdeu poderia estar viva não fosse o processo genocida em curso, o que isso faz com o seu luto? Se os responsáveis por investigar as ações do presidente e dos ministros e funcionários de seu Governo não investigam e o Judiciário não julga, o que isso faz com o seu luto? Se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), não vê nas suspeitas que envolvem o tratamento da covid-19 pelo Governo nenhuma razão para levantar o traseiro da pilha de pedidos de impeachment de Bolsonaro, o que isso faz com o seu luto? Como você faz para que seu cérebro “esqueça” que sua mãe ou seu filho podem ter sido vítimas de um crime contra a humanidade e, caso “apague” essa informação, o que isso fará com a sua sanidade? Sem justiça, o luto está sendo convertido em violência. Só haverá luto para aqueles que perderam os que amavam na pandemia se houver luta por responsabilização.

As instituições já se mostraram incapazes ― ou sem vontade ― de investigar e julgar Bolsonaro mais de uma vez, tanto no plano do Judiciário quanto no do Legislativo. A negação de justiça, que é o que hoje vivemos no Brasil, violenta o luto dos familiares de mortos por covid-19. Sem possibilidade de encontrar justiça no Brasil, organizações da sociedade civil moveram petições no Tribunal Penal Internacional, mas este processo é lento e, como se viu na decisão recente de “arquivamento temporário”, não imune às pressões políticas. A dor, porém, demanda urgência.

Não sei como lidaremos com o fato de testemunhar um genocídio e, com exceção de alguns núcleos de resistência, não realizar como sociedade o esforço mínimo para barrá-lo. Ao deixar de fazê-lo, abandona-se vizinhos, familiares, parentes. Mas abandona-se, individualmente, algo constituinte do que é ser uma pessoa humana. E, coletivamente, quando abdicamos de barrar os horrores que são feitos em nosso nome, abdicamos do coletivo. Já não somos mais nada então, para além de um amontoado de quase 212 milhões de pessoas circunscritas por uma convenção político-geográfica. O Brasil, que já vinha se destroçando, terá de se haver então com algo ainda não nomeável no âmbito do horror. Não se pode passar por cima de algo desse tamanho sem se perder por completo.

Temo, porém, o rearranjo caso não seja feita justiça e não exista reconhecimento dos mortos nem do luto dos que perderam. Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem? É assim que finalmente se fará o desacerto de contas deste país com sua desmemória?

Bolsonaro, assim como todos os apagamentos que ele representa, terá então vencido, porque conseguiu fazer de cada brasileiro um cúmplice, um igual a ele. E agora a maioria já não poderá falar sem denunciar a si mesma. Onde você estava? O que você fez? A sociedade brasileira vai recusar essas perguntas, cada indivíduo vai recusar essas perguntas. E tratará de destruir quem insistir em seguir perguntando.

Há bem pouco do que se orgulhar na história do Brasil, esse país construído sobre corpos humanos e costurado com o fio interminável da violência. Mas isso, isso que estamos deixando acontecer, isso é terrível demais até para nós.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

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